VIDE subjetividade transcendental
Qual é o resultado dessa operação redutora? Na medida em que o eu concreto está entrelaçado com o mundo natural, é claro que está ele mesmo reduzido; em outros termos, eu devo me abster de toda tese a respeito do eu como existente; mas é igualmente claro que existe um eu, que justamente se abstém, e que é o próprio eu da redução. Esse eu é chamado eu puro e a epoqué é o método universal pelo qual eu me apreendo como eu puro. Esse eu puro encerra um conteúdo? Não, no sentido em que ele não é um continente; sim, no sentido em que esse eu é alvo de alguma coisa; mas não se deverá aplicar a redução a esse conteúdo? Antes de responder a essa questão, convém constatar que à primeira vista a redução dissocia plenamente, de um lado o mundo como totalidade das coisas e de outro a consciência sujeito da redução. Procedamos à análise eidética da região coisa e da região consciência.
A coisa natural, por exemplo aquela árvore, me é dada dentro e por um fluxo incessante de esboços, de silhuetas. (Abschaüungen). Estas silhuetas, através das quais se perfila a coisa, são vivências que se relacionam à coisa pelo seu sentido de apreensão. A coisa é como um “mesmo” que me é dado através das modificações incessantes e aquilo que faz com que ela seja coisa para mim (isto é em si para mim) é precisamente a inadequação necessária de minha apreensão dessa coisa. Mas essa ideia de inadequação é equívoca: enquanto a coisa se perfila através das silhuetas sucessivas, eu acedo a ela apenas unilateralmente, por uma de suas faces, mas simultanamente me são “dadas” as outras faces da coisa, não “em pessoa”, mas sugeridas pela face dada sensorialmente; em outros termos, a coisa tal como é dada pela percepção é sempre aberta sobre horizontes de indeterminação, “ela indica com antecedência um diversificado de percepções cujas fases, passando continuamente uma para a outra, se fundem na unidade de uma percepção” (Ideen, 80). Assim, a coisa não pode jamais ser dada a mim como um absoluto, há portanto “uma imperfeição indefinida que depende da essência insuprimível da correlação entre coisa e percepção de coisa” (ibid). No curso da percepção os esboços sucessivos são retocados e uma silhueta nova da coisa pode vir a corrigir uma silhueta precedente, não havendo, entretanto, contradição, pois o fluxo de todas essas silhuetas se funde na unidade de uma percepção, mas ocorre que a coisa emerge através de retoques sem fim.
A própria vivência, pelo contrário, é dada a si mesma numa “percepção imanente”. A consciência de si dá a vivência em si mesma, isto é, tomada como um absoluto. Isto não significa que a vivência seja sempre apreendida adequadamente em sua plena unidade: na medida em que é um fluxo, está sempre já longe passada quando a quero tomar; eis por que, como vivência, é retida, somente como retenção que posso apreendê-la e por que o “fluxo total de minha vivência é uma unidade de vivência impossível, por princípio, de ser apreendido numa percepção, deixando-nos inteiramente “ao sabor” dele” (Ideen, 82). A dificuldade particular, que é ao mesmo tempo uma problemática essencial da consciência, se prolonga no estudo da consciência do tempo interior, mas ainda que não haja adequação imediata da consciência a si mesma, verifica-se que toda vivência traz em si a possibilidade de princípio de sua existência. “O fluxo da vivência, que é meu fluxo, o do sujeito pensante, pode ser, na medida da nossa vontade, não apreendida, desconhecido quanto às partes já decorridas e a decorrerem, bastando que eu aplique o olhar sobre a vida que se desenrola na sua presença real e que nesse ato eu me apreenda a mim mesmo como sujeito puro dessa vida, para que eu possa dizer sem restrições e necessariamente: eu sou, esta vida é, eu vivo: cogito” (Ideen, 85).
Por conseguinte, o primeiro resultado da redução era obrigar-nos a dissociar nitidamente o mundano ou natural em geral de um sujeito não mundano; mas, prosseguindo na descrição, conseguimos hierarquizar de certo modo essas duas regiões do ser em geral: concluímos com efeito pela contingência da coisa (tomada como modelo do mundano) e pela necessidade do eu puro, resíduo da redução. A coisa e o mundo em geral) não são apodíticos (Meditações Cartesianas), não excluem a possibilidade de se duvidar deles, portanto, não excluem a possibilidade de sua não-existência; todo o conjunto das experiências (no sentido kantiano) pode revelar-se simples aparência e ser apenas um sonho coerente. Nesse sentido a redução e já por ela mesma, enquanto expressão da liberdade do eu puro, a revelação do caráter contingente do mundo. O sujeito da redução, ou eu puro é, pelo contrário, evidente a si mesmo de uma evidência apodítica, o que significa que o fluxo de vivência que o constitui enquanto ele se aparece a si mesmo não pode ser questionado nem na sua essência, nem na sua existência. Esta apodicidade não implica numa adequação; a certeza do ser do eu não garante a certeza do conhecimento do eu; mas ela basta para opor a percepção transcendental da coisa e do mundo em geral à percepção imanente: “A posição do mundo que é uma posição “contingente” se opõe à posição de meu eu puro e de minha vivência egológica, que é uma posição “necessária” e absolutamente indubitável. Toda coisa dada em “pessoa” pode também não ser, nenhuma vivência dada “em pessoa” pode não ser (Ideen, 86). Esta lei é uma lei de essência.
Indagamos anteriormente: a redução fenomenológica deve aplicar-se ao conteúdo do eu puro? Compreendemos agora que essa indagação supõe um contra-senso radical, o mesmo que Husserl imputa a Descartes: consiste ele em admitir o sujeito como coisa (res cogitans). O eu puro não é uma coisa, pois ele não se dá a si mesmo como a coisa lhe é dada. Ele não “coabita pacificamente” com o mundo e não tem igualmente necessidade do mundo para ser; pois, imaginemos que o mundo seja aniquilado (reconhecemos de passagem a técnica das variações imaginárias que fixam a essência), “o ser da consciência seria certamente modificado. . ., mas não seria atingido na sua própria existência”. Com efeito, um mundo aniquilado significaria somente para a consciência que yisa este mundo o desaparecimento no fluxo de suas vivências de certas conexões empíricas ordenadas, desaparecimento que acarretaria o de certas conexões racionais reguladas pelas primeiras. Mas esse aniquilamento não implica a exclusão de outras vivências e de outras conexões entre as vivências. Em outro termos, “nenhum ser real é necessário para o ser da própria consciência. O ser imanente é, portanto, indubitavelmente, um ser absoluto, na medida em que nulla “res” indiget ad existendum. Por outro lado, o mundo das res transcendentes se refere totalmente a uma consciência, e de modo algum, a uma consciência concebida logicamente, mas a uma consciência atual” (ibid., 92).
Assim, a epoqué tomada na etapa dos Ideen I tem uma significação dupla: de um lado negativa, porquanto isola a consciência como resíduo fenomenológico e é nesse nível que a análise eidética (isto é ainda natural) da consciência se opera; por outro lado, positiva porque faz emergir a consciência como radicalidade absoluta., Com a redução fenomenológica, o programa husserliano de um fundamento indubitável e originário se realiza numa nova etapa: da radicalidade eidética ela nos faz descer a uma radicalidade pela qual toda transcendência tem fundamento. (Lembremos que é preciso entender por transcendência o modo de apresentação do objeto em geral). Perguntamos como uma verdade matemática ou científica pode ser possível e, contra o ceticismo, vimos que ela só é possível pela posição de essência daquilo que é pensado; esta posição de essência fazia intervir apenas um “ver” (Schau) e a essência era tomada numa doação originária. Depois, meditando sobre essa própria doação e mais precisamente sobre a doação originária das coisas (percepção) descobrimos, aquém da atitude pela qual somos para as coisas, uma consciência cuja essência é heterogênea a tudo aquilo de que ela é consciência a toda transcendência, e pela qual o próprio sentido da transcendência é colocado. Tal é a verdadeira significação da colaboração entre parênteses: voltar o olhar da consciência sobre si mesma, inverter a direção desse olhar e retirar, ao suspender o mundo, o véu que ocultava ao eu sua própria verdade. Sua suspensão exprime que o eu permanece exatamente aquilo que ele é, isto é, “entrelaçado” com o mundo e que seu conteúdo concreto continua a ser o fluxo dos Abschaüungen através do qual se desenha a coisa. “O conteúdo concreto da vida subjetiva não desaparece na passagem para a dimensão filosófica, mas revela-se ali em toda a sua autenticidade. A posição do mundo foi “posta fora de ação” e não aniquilada: ela permanece viva ainda que sob uma forma “modificada” que permite à consciência ser plenamente consciente dela mesma. A epoqué não é uma operação lógica exigida petas condições de um problema teórico, ela é o passo que dá acesso a um modo novo da existência a existência transcendental como existência absoluta. Tal significação só pode realizar-se num ato de liberdade (Tuan-Duc-Thao, Phénoménologie et matérialisme dialectique, págs. 73-74. Tudo que se dissesse a favor desse livro notável seria insuficiente).”
O eu puro, o eu psicológico, o sujeito kantiano.
Não se trata, portanto, de uma volta ao subjetivismo psicologista, pois o eu revelado pela redução não é exatamente o eu natural psicológico ou psicofísico; não se trata tampouco de uma retomada da posição kantiana, pois o eu transcendental não é “uma consciência concebida logicamente, mas uma consciência atual.”
1) Não se pode confundir eu transcendental e eu psicológico e sobre este ponto insistem as Meditações Cartesianas. É certo que, diz Husserl, “eu, que permaneço na atitude natural, eu sou também e a todo instante eu transcendental. Mas (acrescenta) só o percebo efetuando a redução fenomenológica”. O eu empírico é “interessado no mundo”, aí vive naturalmente; sobre a base deste eu a atitude fenomenológica constitui um desdobramento do eu, pelo qual se estabelece o espectador desinteressado, o eu fenomenológico. É esse eu do espectador desinteressado que examina a reflexão fenomenológica, sustentada ela própria por uma atitude desinteressada de espectador. É necessário, portanto, admitir simultaneamente que o eu de que se trata é o eu concreto, pois não existe Cambem nenhumas diferença de conteúdo entre psicologia e fenomenologia e que não é o eu concreto, porquanto está separado do seu ser no mundo. A psicologia intencional e a fenomenologia transcendental partirão ambas do cogito, mas a primeira permanece no nível mundano enquanto que a segunda desenvolve sua análise a partir de um cogito transcendental que envolve o mundo em sua totalidade, inclusive o eu psicológico.
2) Estaremos, por conseguinte, diante do sujeito transcendental kantiano? Muitas passagens tanto nas Ideen I como nas Meditações Cartesianas dão-nos tal impressão e não foi por acaso que o criticista Natorp manifestou sua concordância com as Ideen I (Husserls Ideen zun einer reinen Phänomenologie, Logos, VII, 1917-18). Tais sugestões provém principalmente do fato de Husserl insistir sobre o ser absoluto da consciência, a fim de evitar que se creia que esse eu não passa de uma regiáo da natureza (o que é o próprio postulado da psicologia). ftle demonstra que, pelo contrário, a natureza só é possível pelo eu: “A natureza só é possível a título de unidade intencional motivada na consciência por meio de conexões imanentes… O domínio das vivências enquanto essência absoluta… é essencialmente independente de todo ser pertencente ao mundo, à natureza e não tem necessidade dele nem para a sua existência. A existência de uma natureza não pode condicionar a existência da consciência, pois uma natureza se manifesta ela mesma como correlato da consciência” (Ideen, 95-6). Os criticistas (Natorp, Rickert, Kreis, Zocher) se apoiam nessa filosofia transcendental, mostram que para Husserl assim como para Kant a objetividade depende do conjunto dessas condições a priori e que o grande problema fenomenológico é o mesmo que o da Crítica: como é possível um dada? Quanto ao aspecto intuicionista, e especialmente quanto a esta pura apreensão da vivência por ela mesma na percepção imanente, não resta dúvida de que para Kreis sua origem está num pressuposto empirista: como, com efeito, poderia ocorrer que um sujeito, que é apenas o conjunto das condições a priori de toda objetividade possível, seja também um fluxo empírico de vivência apto a apreender sua indubitabilidade radical numa presença originária para si? Kant escrevia: “Fora da significação lógica do eu, não possuímos nenhum conhecimento do sujeito em si, que está na base do eu como de todos os pensamentos, na qualidade de substrato.” O princípio de imanência husserliano resulta de uma psicologia empirista, é incompatível com a constituição da objetividade. Salvo essa ressalva, Husserl seria um bom kantiano.
Num artigo célebre (Die phanomenologische Philosophie E. Husserls inder gegenwartigen Kritik, Kantstudien, 1933. Referendado por Husserl), E. Fink, na ocasião assistente de Husserl, responde a esses comentários de forma propícia a esclarecer nosso problema: a fenomenologia não se coloca o problema da origem do mundo, problema que se propunham as religiões e as metafísicas. Sem dúvida o problema foi eliminado pelo criticismo porque era sempre colocado e resolvido em termos aporísticos. O criticismo substituiu-o pelo das condições de possibilidade do mundo para mim. Mas essas condições são por si mesmas mundanas e toda a análise kantiana fica no nível eidético apenas, isto é, mundano. É, portanto, evidente que o criticismo comete um erro de interpretação sobre a fenomenologia. Esse erro é especialmente manifesto no que concerne à questão da imanência e da “fusão” do sujeito transcendental com o sujeito concreto. Na realidade não existe fusão, mas, ao contrário, desdobramento; pois aquilo que é dado anteriormente a toda construção conceituai é a unidade do sujeito; e o que é incompreensível no criticismo em geral é que o sistema das condições o priori da objetividade seja um sujeito, o sujeito transcendental. Na realidade o sujeito perceptivo é o mesmo que constrói o mundo, no qual entretanto ele está pela percepção. Quando se explora na perspectiva de seu entrelaçamento com o mundo, para distingui-lo desse mundo, utiliza-se o critério da imanência; mas a situação paradoxal provém do fato de que o próprio conteúdo dessa imanência é tão-somente o mundo enquanto visado, intencional, fenômeno, ao passo que esse mundo é colocado como existência real e transcendente pelo eu. A redução que provém desse paradoxo permite-nos precisamente apreender como existe para nós um em si, isto é, como a transcendência do objeto pode ter um sentido de transcendência na imanência do sujeito. A redução devolve ao sujeito sua verdade de constituinte das transcendências, implícita na atitude alienada que é a atitude natural. [Lyotard]