Estes homens estarão compostos, como nós, de uma alma e um corpo; e é mister que vos descreva primeiro o corpo, à parte, depois a alma, também à parte, e por último que vos mostre como estas duas naturezas têm que estar unidas e juntas para compor homens que se nos assemelhem.
Suponho que o corpo não é outra coisa que uma estátua ou máquina de terra que Deus forma expressamente para fazê-la o mais semelhante a nós quanto possível, de sorte que não só lhe dá por fora a cor e a figura de todos nossos membros, como ainda põe dentro todas as peças que se requerem para que ande, coma, respire e, enfim, imite todas aquelas nossas funções que se podem imaginar procedentes da matéria e só dependentes da disposição dos órgãos.
Vemos relógios, fontes artificiais, moinhos e outras máquinas semelhantes que, embora estando feitas só por homens, não deixam de ter a faculdade de se moverem por si mesmas de vários modos diversos; e parece-me que não se poderia imaginar tantas classes de movimentos nesta, que suponho feita pelas mãos de Deus, nem atribuir-lhe tanto artifício que não tenhais motivo para pensar que ainda possa haver mais. (…)
Dir-vos-ei que quando Deus une uma alma racional a esta máquina, como pretendo dizer-vos mais adiante, dar-lhe-á sua sede principal no cérebro e a fará de tal natureza que, segundo os diversos modos como se abram, por meio dos nervos, as entradas dos poros que há na superfície interior desse cérebro, terá diferentes sentimentos. (Descartes – Traité de l’homme, I, 1-2, III, 28.)