inteligência, faculdade de conhecimento. — Distingue-se do “juízo”, que consiste em empregar os conhecimentos abstratos do entendimento nos casos particulares da vida. Os filósofos cartesianos opunham o “entendimento” (a faculdade de conhecer) à “vontade” (a faculdade de julgar e agir). Em Spinoza, o entendimento designa a faculdade de compreender a verdade e situa-se acima da “razão”, que é o poder de discutir e argumentar; em Kant, ao contrário, o entendimento situa-se abaixo da “razão”: é a faculdade de compreender as relações entre os objetos do mundo real, enquanto que a razão está identificada a nossas aspirações infinitas, ao sentimento moral do dever, entusiasmo, estado de excitação alegre que os filósofos gregos (principalmente Platão, no diálogo Ion) atribuem à posse divina (em gr. en-theos, estar em Deus), que ergue e “transporta” o espírito acima das preocupações humanas. Curiosamente, a Antiguidade considerava o ardor apaixonado que confere o entusiasmo por um estado favorável ao filósofo em sua busca da verdade, tanto quanto para o músico, para o guerreiro ou para o sacerdote.
O entendimento humano é a faculdade de pensar (pensamento), isto é, a faculdade de perceber, de modo intuitivo, o ser e as relações. Sendo assim, difere essencialmente da confusamente chamada inteligência animal, mesmo em suas mais elevadas operações instintivas. (instinto). — O entendimento baseia-se na natureza da alma humana considerada como ser espiritual (espírito, alma); todavia em sua peculiaridade de entendimento humano, está circunscrito, ao mesmo tempo, às condições particulares do espírito do homem, que é forma essencial configuradora de um corpo. Embora o entendimento nos seja dado, antes de mais nada, como entendimento humano, o entendimento em geral, por sua essência, não é a mesma coisa que entendimento humano. O entendimento em geral está associado ao conhecimento espiritual enquanto tal, sem diferença alguma, quer o conhecimento se realize de maneira ilimitada, como no espírito infinito de Deus, quer de maneira limitada, como no espírito criado ou mesmo ligado ao corpo. O objeto característico do conhecimento espiritual e do entendimento em geral é o ente enquanto tal (ser). Enquanto o entendimento do homem está unido ao corpo e ao conhecimento sensorial, dito objeto só lhe é dado na essência que brilha na coisa sensível (intelligibile in sensibili).
Sendo assim, a peculiaridade do entendimento humano caracteriza-se pelos seguintes binômios de conceitos opostos: Em primeiro lugar, ele é espiritual e orientado para o espiritual, e todavia está ligado a funções sensoriais e, portanto, à matéria. É espiritual, porque só uma faculdade, cujos atos não são imediatamente co-realizados por um princípio material, por conseguinte uma faculdade rigorosamente imaterial, pode dirigir-se a objetos espirituais e neles encontrar a perfeição de seu ser e sentido. Só uma faculdade espiritual pode apresentar em seu ser próprio o inintuitivo e o simples. A distinção de eu, não-eu e ato, e a pergunta, por tal meio possibilitada, acerca do valor lógico, ético e estético, dos atos e da existência própria, bem como o perfeito “con-sigo” (Bei-sich) da autoconsciência, pressupõem também um princípio espiritual do conhecimento. Por outro lado, é notória a ligação com o conhecimento sensorial: o entendimento humano deve extrair da experiência sensível quase todos os conceitos primitivos; não possui nenhuma intuição imediata das essências espirituais (formação do conceito, ontologismo). O entendimento mantém igualmente, no curso global do pensar, a vinculação às imagens sensíveis (a conversio ad phantasmata dos escolásticos). Pode erguer-se ao espiritual e ao supra-sensível, mas só pelo caminho da analogia. Com esta ligação ao conhecimento sensorial está conexo o caráter discursivo e abstrativo da atividade do conhecimento humano, de tal maneira que o entendimento em sentido estrito designa a faculdade de pensar discursiva e abstrativamente. Sobre a diferença entre entendimento e razão, “intellectus” e “ratio”: VIDE razão.
A característica peculiar do entendimento humano manifesta-se, em segundo lugar, no contraste entre receptividade e espontaneidade. É clássica a distinção entre entendimento agente (atuante) e paciente ou passivo (que se torna atuado) na doutrina da abstração, tal como desde Aristóteles tem sido elaborada de diversas formas (formação do conceito). Além disso, a espontaneidade do espírito manifesta-se na direção da atenção, nos atos de tomada de posição próprios do juízo e no pensamento criador que supõe sempre a recepção de um conteúdo cognitivo.
Em terceiro lugar, a oposição de imanência e transcendência na atividade do entendimento é superada pela imagem cognoscitiva intelectual, pelo verbum menti» (conhecimento), imagem que, do ponto de vista ontológico, permanece toda no cognoscente, mas que, no entanto, por seu caráter de imagem, o leva, para além de si mesma, ao objeto. — Sobrepujando essencialmente as faculdades sensoriais, o entendimento, inclusive nas operações perfeitas do pensamento criador, permanece, segundo o exposto, unido, de maneira natural, ao conjunto do modo de conhecer sensitivo-intelectual e, ao mesmo tempo, ao todo da personalidade psicológica, incluindo a parte irracional desta. Pelo contrário, o culto de uma chamada intuição extra-intelectual do espiritual, com eliminação ou menosprezo do entendimento, é tão deformante ou mais do que o cultivo e valorização unilaterais do entendimento. — Willwoll. [Brugger]
Apesar de na antiguidade e na idade média se ter falado mais de intelecto do que de entendimento, vamos unificar sob este último termo todas as doutrinas referentes à realidade aludida por estes dois termos.
Depressa se distinguiu entre o entendimento como ordem do cosmos e o entendimento como uma faculdade pensante que, além disso, reflete ou pode refletir, a citada ordem cósmica. Aristóteles – do qual procede a maioria das concepções medievais – defende que como o entendimento é uma faculdade da alma humana não se pode identificar simplesmente com a alma. A alma tem várias faculdades, e o entendimento é uma delas. É “a parte da alma com a qual conhece e pensa” (Da Alma). Esta definição suscita vários problemas; o da função própria do entendimento e o da sua natureza última são dois dos mais importantes.
No que diz respeito ao primeiro problema, pode perguntar-se se o entendimento é principalmente intuitivo ou principalmente discursivo. Aristóteles parece destacar o primeiro aspecto. Em todo o caso, este aspecto foi o que maior influência teve entre os seguidores de Aristóteles.. Sublinhou-se, com efeito, que o entendimento é capaz de compreender os princípios da demonstração e os fins últimos da acção; concebeu-se então como um hábito que não procede nem da ciência nem da arte, mas sem o qual não haveria nem ciência nem arte. Portanto, não é propriamente o saber mas antes uma sabedoria.
No que se refere ao segundo problema, pode perguntar-se se o entendimento, enquanto faculdade da alma, é realmente distinto de outras faculdades (a sensível, a imaginativa, etc) ou se há, por assim dizer, uma continuidade entre todas as faculdades. Umas vezes, Aristóteles parece falar do entendimento como de uma faculdade separada e, outras vezes, em contrapartida, opõe-se rigorosamente ao dualismo platônico e manifesta-se hostil a toda a separação; ao fim e ao cabo, a conhecida definição aristotélica da alma faz dela una com o corpo. Pode falar-se, pois, de um Aristóteles intelectualista e por vezes platonizante e de um Aristóteles fundamentalmente naturalista e funcionalista. Digamos, rapidamente, que Aristóteles considera que , na sensação há “algo de conhecimento”, de modo que pode dizer-se que a apreensão sensível tem algo intelectual. Contudo, a notícia dada pela faculdade sensível não é, todavia, conhecimento propriamente dito. Este surge unicamente quando há, como acontece na alma humana, não só faculdade sensível, nem tão- pouco apenas imaginação e memória, mas também precisamente entendimento. Enquanto a faculdade sensível tem a capacidade de apreender os “aspectos sensíveis” das coisas, o entendimento tem a capacidade de apreender “os aspectos inteligíveis”. Ambos os aspectos têm de ser atualizados por serem apreendidos. Mas enquanto a atualização dos aspectos sensíveis é uma causa ou movimento, parece difícil admitir que haja uma causa ou movimento que atualize “os aspectos inteligíveis”. Daí que se chame a este entendimento passivo e se reclame a existência de outro a que posteriormente se chamou ativo ou agente, ao qual se refere Aristóteles quando diz que, por meio dele, a capacidade de apreensão dos aspectos inteligíveis se atualiza ou chega a ser efetiva. A tradição aristotélica discutiu profusamente se o entendimento agente estava ou não separado do composto humano ou se era imanente ao mesmo e próprio de cada homem. S. Tomás afirmou que o entendimento ativo se encontra na alma como uma virtude capaz de tornar inteligível aquilo que o sensível tem de inteligível. Deste modo sublinhava o imanentismo contra o transcendentalismo e o separatismo de Averróis. Para este não há diferença entre o entendimento ativo e o passivo; ambos formam um só. Por conseguinte, os homens não pensam; o entendimento é a única coisa que neles pensa. Havendo um só entendimento transcendente às almas, estas não podem ser imortais: só o entendimento único é imortal. Daí a oposição de S. Tomás e mais autores ao averroismo (v. Averroes).
Apesar de se poder dizer que a questão formulada nestes termos deixou de existir, é inegável que perdurou na filosofia moderna, apesar de reformulada de outro modo. Aproxima-se mais do sentido moderno ao colocá-la nesta pergunta: “como é possível o conhecimento – enquanto ciência – em sujeitos que, pela sua estrutura psicológica e psicofisiológica, parecem poder apreender unicamente dados dos sentidos e não dados inteligíveis, universais, etc?” Neste sentido, muitos filósofos modernos se ocuparam do problema. Pode mesmo estudar-se a teoria do conhecimento de Kant como uma resposta à questão da natureza e função de uma espécie de entendimento ativo: constituído pelos conceitos do entendimento. Seja como for, é forçoso dar algumas indicações sobre o termo entendimento na filosofia moderna. É comum, nesta filosofia, o uso do termo entendimento para designar toda a faculdade intelectual, embora organizada em diversos graus. Em alguns casos, como em Espinosa, o entendimento equivale à “faculdade de conhecimento” nos seus diversos graus. Os modos como pode exercitar-se o entendimento ou “modos de percepção” são, ao mesmo tempo, “modos do entendimento”. Esses modos são quatro: 1) segundo o que se diz, ou segundo qualquer signo escolhido arbitrariamente; 2) por experiência vaga; 3) por apreensão da essência de uma coisa concluída de outra essência, mas não adequadamente, e 4) por percepção apenas da essência da coisa ou conhecimento da causa próxima. Esta ideia do entendimento como potência cognoscitiva completa encontra-se noutros autores modernos, por exemplo em Locke. Para este, os objetos do entendimento são as ideias, tanto as de sensação como as de reflexão. Isso mostra que, em Locke, o entendimento compreende, no seu primeiro grau, aquilo a que, por vezes, se chama sensibilidade.
Leibniz distingue entre sensibilidade e entendimento e afirma que esta diferença não é essencial mas gradual. Com efeito, conhecer equivale a ter representações, as quais podem ser menos claras (sensibilidade) ou mais claras (entendimento propriamente dito). A sensibilidade está subordinada ao entendimento, no qual as representações alcançam o grau desejável de clareza e distinção. Kant opõe-se à ideia Leibniziana de que a sensibilidade é uma forma inferior do entendimento e proclama uma distinção fundamental entre ambas. A sensibilidade é uma faculdade de intuição. Mediante a faculdade sensível, agrupam-se os fenômenos segundo as ordens transcendentais do espaço e do tempo. A sensibilidade é a faculdade das intuições a priori. O entendimento, em contrapartida, é uma “faculdade das regras”. Mediante ela, pensa-se sinteticamente a diversidade da experiência. A sensibilidade ocupa-se de intuições; o entendimento de conceitos. Estes são cegos sem as intuições, mas as intuições sem os conceitos são vazias. “O entendimento não pode intuir nada; os sentidos não podem pensar nada” (Crítica da Razão Pura). Em suma, o entendimento pensa o objeto da intuição sensível, de tal modo que a faculdade do entendimento e a da sensibilidade não podem “trocar as suas funções”: só quando se unem se obtém conhecimento. Pode definir-se o entendimento de modos muito diversos; como espontaneidade (ao contrário da passividade da sensibilidade), como poder de pensar, como faculdade de conceitos, como faculdade de juízos. Segundo Kant, todas estas definições são idênticas, pois equivalem à citada “faculdade das regras” (ibid., A 126). Mas com isso resulta que o entendimento não é propriamente uma faculdade mas uma função ou conjunto de operações que visam produzir sínteses e, assim, a torna possível o conhecimento em formas cada vez mais rigorosas. Portanto o entendimento põe em relação as intuições e leva a cabo as sínteses sem as quais não pode haver enunciados necessários e universais. Ao mesmo tempo que estrutura positivamente o conhecimento (ou, melhor, a sua possibilidade), o entendimento estrutura-o negativamente, pois estabelece os limites para além dos quais não se pode ir. Estes limites estão marcados pela fronteira que divide o entendimento e a razão. Esta não pode constituir o conhecimento; em suma, pode estabelecer certas e certas diretrizes de caráter muito geral. Ora, a distinção kantiana foi aceite por diversos autores como Fichte, Schelling e Hegel, mas, ao mesmo tempo, foi voltada do avesso. Considerou-se que o entendimento era uma faculdade inferior que não se pode comparar em poder e majestade com a razão, e considerou-se que esta última, mediante a “intuição intelectual”, podia penetrar naquele reino que Kant tinha colocado fora dos limites do conhecimento teórico. Não se tratava, como Kant postulara, de afirmar a possibilidade de um contato com “a realidade em si” por meio da razão prática; era a razão teórica e especulativa que o apreendia “em si”.
Em vez de subordinar o entendimento à razão de um modo romântico, Hegel procurou integrá-lo e hierarquizá-los de um modo sistemático. Concebeu o entendimento como razão abstrata, ao contrário da razão concreta, única que se pode chamar verdadeiramente razão. Enquanto o entendimento é a própria razão identificadora e que habita o concreto ou que, em suma, quer assimilar as diferenças do concreto, a razão é a absorção do concreto pelo racional, identificação última do racional com o real para além da simples identificação abstrata. A questão é, na verdade, o espírito, o qual deve ser considerado como algo superior à pura razão raciocinante. [Ferrater]