(in. Double truth; fr. Double vérité; al. Doppelte Wahrheit; it. Doppia verita).
Foi assim que os escolásticos latinos designaram a doutrina de Averróis sobre as relações entre religião e filosofia, sendo assim designadas depois todas as doutrinas semelhantes. Segundo Averróis “a religião dos filósofos consiste em aprofundar o estudo de tudo o que é; não se poderia render a Deus culto melhor do que conhecer suas obras, que leva a conhecê-lo em toda a sua realidade” (Munk, Mélanges de phil. juive et árabe, p. 456). Por outro lado, a pesquisa filosófica não pode ser de todos e a religião do filósofo não pode ser a religião do vulgo. A religião feita para a maioria segue e deve seguir um caminho “simples e narrativo”, que ilumine e dirija a ação. Segundo Averróis, cabe à filosofia o mundo da especulação; à religião, o mundo da ação (Destructio destruitionum, disp. 6, pp. 56, 79). Como se vê, o ponto de vista de Averróis nada tem em comum com o fideísmo grosseiro que contrapõe a verdade da razão à verdade da fé e se decida por esta num ato de arbítrio ou de deferência à autoridade. Mas depois a expressão dupla verdade serviu justamente para designar esse fideísmo, fosse ele sincero ou insincero. Assim, no último período da Escolás-tica, muitas proposições, consideradas demonstração impossível, são admitidas por fé; e Duns Scot delimita nitidamente a esfera da fé, que diz respeito à ação, e a esfera da filosofia, que diz respeito à especulação (Op. Ox., Prol., q. 3). Com Ockham e seus seguidores, essa posição torna-se ainda mais radical, visto reconhecer-se a impossibilidade de demonstrar todas as proposições fundamentais da fé. Ockham afirmava peremptoriamente que “os artigos de fé não são princípios de demonstração, nem conclusões, nem probabilidades” (Summa log., III, 1), querendo dizer que não são verdades evidentes, nem verdades demonstradas, nem proposições prováveis. Mas nem mesmo em Ockham se observa a atitude desconcertante que foi típica de muitos aver-roistas dos sécs. XIV e XV, consistente em declarar friamente, sem a mínima justificação, que se acredita no contrário daquilo que se demonstrou, pois assim quer a fé ou a religião. Dizia, p. ex., João de Jandun (séc. XIV): “Conquanto essa opinião de Averróis não possa ser refutada com razões demonstrativas, eu digo o contrário e afirmo que o intelecto não é numericamente uno”em todos os lugares… Mas isso não demonstro com nenhuma razão necessária porque não julgo possível; e se alguém sonhar fazê-lo, que se alegre (gaudeat). Essa conclusão, afirmo que é verdadeira e julgo indubitável unicamente pela fé” (De an., III, q. 7). E também a propósito de outros pontos fundamentais da fé cristã João de Jandun repete seu convite irônico: “alegre-se quem souber demonstrá-lo”. É difícil crer na sinceridade de semelhante atitude, assim como é difícil acreditar na sinceridade de um Pomponazzi, que, depois de demonstrar a inconciliabilidade entre o destino e o livre-arbítrio, declara explicitamente que é preciso crer na Igreja e portanto negar o destino (De fato, Perorat.): escapatória a que muitos recorreram entre os sécs. XVI e XVII. Na realidade, só esse ponto de vista (se assim se pode chamá-lo) deveria ser chamado de “dupla verdade”, ao passo que para o outro, representado por Averróis, a verdade é uma só e a religião e a filosofia simplesmente a expressam de modos diferentes, uma para a especulação e outra para a ação. Numa forma ou noutra, porém, a atitude da dupla verdade continua tendo, ainda hoje, seus defensores tácitos, tanto em filosofia quanto em religião e política. Quando se acha que nem todas as verdades devem ser ditas e proclamadas, que algumas verdades podem ser perigosas para a “maioria”, sendo, pois, necessário calar sobre elas ou ignorá-las oficialmente, está-se encarnando, ainda que inconscientemente, a atitude que a tradição filosófica chamou de dupla verdade. Essa atitude pode caracterizar-se como crença no caráter aristocrático àa. verdade, ou seja, de que a verdade realmente se destina a uns poucos e a “maioria” é incapaz de suportá-la. [Abbagnano]
A doutrina da dupla verdade, defendida primeiramente pelo averroísmo latino e, mais tarde, por Pomponazzi, declara que filosoficamente pode ser verdadeiro o contrário daquilo que teologicamente é admitido como verdade de fé. De modo idêntico, o modernismo, vai para meio século, ensinava que a negação de determinadas verdades, p. ex., da ressurreição de Cristo, pela ciência histórica era perfeitamente compatível com a sua aceitação pela fé. Mas a verdade autêntica nunca pode contradizer a verdade. A doutrina da dupla verdade leva à conclusão de que o caráter de genuína verdade é denegado às doutrinas da fé e que a estas só resta o valor de representação simbólica ou pouco mais. — De Vries. [Brugger]