Filosofia – Pensadores e Obras

analogia do ser

Tomás de Aquino adverte e sublinha esta especialíssima dificuldade do problema do ser, e nos diz: o ser é um termo análogo, quer dizer, nem unívoco nem equívoco. “Unívocos” chamam os lógicos aos termos que designam sempre uma e a mesma coisa. São termos que, por assim dizer, não têm perda; significam sempre o mesmo e não há possibilidade de enganar-se, conhecendo-se o único significado que possuem. A palavra “homem”, por exemplo, é termo unívoco, que designa sempre o mesmo ser, o mesmo objeto. “Equívocos” chamam em troca, os lógicos aos termos ou conceitos que têm duas ou mais significações completamente diversas, quer dizer, que se referem a dois ou mais objetos totalmente distintos entre si e heterogêneos. A palavra “macaco”, por exemplo, significa umas vezes o conhecido animal e outras vezes o aparelho mecânico que serve para levantar peças grandes e pesadas (o “macaco do carro”). Entre “macaco” no primeiro significado e “macaco” no segundo não existe a menor semelhança, a menor relação, e embora a palavra que designa essas duas coisas heterogêneas seja a mesma fonética e ortograficamente falando, há na realidade como que duas palavras e dois conceitos distintos. “Análogos” chamam, por último, os lógicos aos termos ou conceitos que designam — como os equívocos — objetos distintos, mas não inteiramente diferentes, antes em parte semelhantes e em parte diferentes, ou seja termos cuja significação não varia senão em parte ao designar ora uns, ora outros objetos. A palavra “sano”, em espanhol, não significa exatamente o mesmo dita do animal e dita do alimento, mas seu significado também não é inteiramente diferente; a “sanidad”, em espanhol, de tal ou qual alimento não é objeto idêntico à “sanidad” de tal ou qual animal, mas também não é objeto totalmente diverso.

Agora, sabendo já o que são termos unívocos, equívocos e análogos, perguntemo-nos com toda clareza: o ser é um termo unívoco, equívoco ou análogo? E a solução que radical e profundamente se der a este problema representará uma atitude ou posição tão fundamental, tão central na filosofia, que necessariamente terá que imprimir cará ter em todo o resto do sistema filosófico, até nas suas menores e mais longínquas ramificações. A atitude ante este problema do ser definirá, pois, todo o pensamento, toda a personalidade, todo o estilo de um filósofo. Com efeito: suponhamos que se adote a solução da univocidade do ser. Que quererá dizer então isso de que o ser é unívoco? Quererá dizer — relembremos nossa definição do termo “unívoco” — que o ser é conceito que designa sempre um e o mesmo objeto; quererá dizer que não existe mais que um ser e que todos os distintos seres são distintos somente em aparência, mas na realidade idênticos; quererá dizer que todas as diversidades da realidade são redutíveis a um só e único ser. A consequência imediata de tudo isto será o que costuma chamar-se monismo (do grego monos = um, único), que poderá ser monismo materialista, ou monismo idealista, ou panteísmo; em suma a teoria filosófica segundo a qual os seres múltiplos e aparentemente distintos são no fundo e na verdade aspectos de um e mesmo ser idêntico. Mas suponhamos, pelo contrário, que se tome o conceito do ser como equívoco. Que quererá dizer então isto de que o ser é equívoco? Quererá dizer, segundo nossa definição, que o ser é conceito que designa objetos totalmente diversos uns dos outros; quererá dizer que o ser em cada caso tem uma significação completamente diferente daquela que tem noutro caso. Mas esta posição inicial aonde levará? Levará evidentemente a reconhecer na realidade a multiplicidade variada de todos os seres; levará a distinguir positivamente todos os seres que há ou que existem, que são reais ou que são a realidade. Mas também levará diretamente ao cepticismo. Porque não havendo nada de comum entre os diversos seres da realidade, fica abolida a possibilidade do conhecimento, o qual sempre e necessariamente tem que recair — direta ou indiretamente — sobre o comum, o genérico, o idêntico de muitos seres.

Com efeito, a história da filosofia nos mostra notórios exemplares de sistemas nos quais essas duas posições com suas principais consequências estão perfeitamente realizadas. Temos a atitude dos monistas, idealistas ou materialistas, que sustentam a univocidade do ser. São os românticos da filosofia, os que somente têm olhos para o comum e idêntico dos seres e não percebem, não reconhecem o diferencial e diverso. Na antiguidade, por exemplo, Parmênides, Demócrito, na Idade Moderna, os idealistas ou panteístas, Descartes, Espinosa, Kant, Hegel. Diante dessa estirpe de pensadores românticos encontramos o grupinho reduzido daqueles que se aferram à equivocidade do ser; para estes a palavra ou conceito de “ser”, sendo equívoca, refere-se, cada vez que se pronuncia, a algo totalmente distinto, e muda inteiramente de sentido cada vez que se emprega. Para estes principalmente não pode haver conhecimento da ciência alguma.

São estes na Antiguidade Heráclito, os cépticos (v. ceticismo); na Idade Moderna Hume, e em certo sentido o filósofo francês, tão respeitável por outras razões, Bergson.

Já a filosofia antiga anterior a Aristóteles percebera com plena clareza as dificuldades inexplicáveis em que se enreda o pensamento se adota a atitude monista e romântica ou a atitude céptica de um pluralismo irracional. O esforço para achar uma nova atitude foi na realidade o que gerou na Grécia o pensamento filosófico clássico. Nem Parmênides, nem Heráclito, nem panteísmo, nem cepticismo. Sócrates inaugura um novo modo de pensar, que Platão aperfeiçoa e que Aristóteles leva à sua mais alta forma. O ser não é nem unívoco nem equívoco, é análogo. Que quer dizer, pois, analogia do ser? Quer dizer que o ser tem distintas significações; porém que são distintas não inteiramente, mas só em parte. O ser, diz Aristóteles, se diz de muitas maneiras; existem diversas modalidades de ser, embora sob todas elas permaneça a unidade do ser enquanto tal. Esta unidade do ser, isso que há de comum entre todos os seres, não os torna um só ser até o ponto de tornar unívoco o conceito de ser; mas também não torna cada um deles um objeto totalmente distinto dos demais até o ponto de estabelecer entre eles uma diferença total que conduziria à impossibilidade do conhecimento. Aristóteles fixou na Grécia as bases fundamentais de uma teoria da analogia do ser.

Foi, porém, Tomás de Aquino quem levou essa teoria à sua forma mais profunda e perfeita. Em Tomás de Aquino a noção de analogia do ser está elaborada com tanta profundidade e exatidão que ao cardeal Caietano, intérprete e comentador do Doutor Angélico, não resta outra tarefa que a de reduzir a terminologia ordenada, simples e breve, a teoria que desde então circula por todos os manuais de filosofia. E nessa posição tão nítida e precisa se documenta de modo exemplar o classicismo de Tomás de Aquino. O primeiro dos caracteres que enumerávamos de um escritor clássico, encontramo-lo em Tomás de Aquino levado a seu mais alto grau. A realidade, para ele, não é nem uma única estrutura ôntica nem uma infinita diversidade de objetos incognoscíveis, mas um sistema de modos de ser, que permitem ao intelecto chegar ao conhecimento do próprio individual na base do comum específico e genérico. O olhar de Tomás de Aquino, passando sobre o estritamente individual nas coisas, busca o típico e comum a grandes grupos de seres, mas sem perder-se, como o romantismo filosófico, na infinita distância de uma intuição idealista que põe uma identidade absoluta em lugar da diversidade ordenada e inteligível. [Morente]


É evidente, após o que dissemos a respeito de suas exigências internas, que a noção de ser só pode ser uma noção analógica. Não é equívoca, pois não é uma simples palavra à qual não corresponderia nenhuma realidade profunda. Não é unívoca, pois não pode se diferenciar à maneira de um gênero. Resta, pois, que seja analógica, isto é, que contenha, de maneira ao mesmo tempo diferenciada e unificada, as diversas modalidades do ser.

Esta tese se encontra do modo mais manifesto em Aristóteles, que parece ser o seu inventor. Retomada por Tomás de Aquino, foi sempre defendida na escola tomista. Por outro lado, chocou-se contra a oposição dos discípulos de Scoto. Este, sem chegar a dizer que o ser é um gênero, afirmou que o ser é uma noção unívoca, abstraindo portanto perfeitamente de seus inferiores, e apenas compreendendo-os em potência. Responde-se, de modo clássico, que se as modalidades do ser são exteriores à sua noção, não se vê o que elas possam significar, nem como elas podem vir a dividir o ser de outro modo que não o de verdadeiras diferenças específicas, o que nos conduz a fazer do ser um gênero, com todos os inconvenientes que isto comporta.

A que tipo de analogia se liga a analogia do ser? A resposta a esta questão não é possível sem colocar uma dificuldade; pois consta à reflexão que a analogia do ser apresenta caracteres que convêm a cada um dos tipos de analogia distinguidos precedentemente. É claro, de início, que todos os modos do ser são formal e intrinsecamente ser: esta folha de papel, sua cor, sua grandeza são, efetivamente ser, e não somente por uma denominação vinda do exterior. O ser é portanto, a este título, análogo de uma analogia de proporcionalidade. Mas, sob outros aspectos, parece ser tributário da analogia de atribuição. É mesmo desta maneira que Aristóteles no-lo apresenta; para ele, com efeito, há um primeiro analogado, a substância, ao qual se reportam as outras modalidades do ser: “O ser, com efeito, se toma em múltiplas acepções, mas em cada acepção toda denominação se faz em relação a um princípio único. Tais coisas são ditas seres porque são substância, tais outras porque são afecções da substância, tais outras porque são encaminhamentos para a substância, etc. . . ” Se nos colocamos com Tomás de Aquino do ponto de vista superior das relações do ser criado com o ser incriado, aqui ainda encontramos a analogia de atribuição, o ser sendo dito “per prius” de Deus que é o ser por si, e “per posterius” somente das criaturas, que são ser somente por participação e em dependência mesma do ser de Deus.

Encontramo-nos aqui, como também para as outras noções transcendentais, uno, vero, bem, diante de um caso de analogia mista, onde parecem se conjugar a proporcionalidade e a atribuição. Se se admite, como é o nosso caso, que a analogia de proporcionalidade possui alguma coisa de primeiro e de fundamental, pelo menos em relação a nós, dir-se-á, com João de Tomás de Aquino, que o ser é análogo de uma analogia de proporcionalidade incluindo virtualmente uma analogia de atribuição. O ser, segundo esta tese, apresentar-se-ia, de início, como uma noção menos determinada, na qual as modalidades do ser que experimentamos viriam se unificar de maneira proporcional; por explicação, a ordem profunda destas modalidades apareceria em seguida: em relação , substância, no plano da causalidade material; em relação ao ser por si, a Deus, no plano da causalidade transcendente eficiente, final ou exemplar. A noção de ser, se já possui uma certa consistência sem que haja referência explícita ao princípio do ser, a Deus, tem contudo todo o seu valor apenas no momento em que seus diversos modos vêm se ordenar em dependência deste.

Desta concepção do ser resultam, para a metafísica, consequências extremamente importantes. Para melhor nos darmos conta, reagrupemos os resultados já obtidos.

1. A noção de ser é obtida ao termo de um esfôrço original de abstração ou de separação da matéria que se situa no nível do juízo. Esta abstração tem por efeito afastar o ser enquanto ser não do real ou do existente -que, pelo contrário, torna-se o objeto mesmo do metafísico – mas das condições materiais da existência, o que não é a mesma coisa.

2. Assim se encontra constituída uma noção, um conceito que, submetido a análise, revela ter um certo conteúdo onde se discernem os dois aspectos de uma essência que determina uma existência proporcionada; o ser é o que é.

3. este conceito possui a estrutura de uma noção analógica, isto é, abstrai imperfeitamente dos seus inferiores, os quais aí permanecem presentes de modo implícito ou confuso, e originariamente apenas possui um modo de unidade proporcional e, portanto, imperfeito.

4. Fundamentalmente, a analogia do ser é uma analogia de proporcionalidade, sendo todos os modos do ser, até suas últimas diferenças, ser; mas a multiplicidade destes modos é ordenada, isto é, relativa ao primeiro ser. Vista sob este aspecto, que a perfaz, a analogia do ser é uma analogia de atribuição.

5. Pelo fato de ultrapassar todos os gêneros e de se encontrar implicada em todas as diferenciações dos seus modos, a noção de ser merece o qualificativo de transcendental (no sentido escolástico da palavra).

Quais são pois os caracteres da ciência que terá esta noção por objeto?

A metafísica se apresenta de início com um caráter ou uma orientação realista bastante acentuada. Certamente, como em toda ciência, já o observamos, há um esfôrço de abstração; mas este esfôrço, ou melhor, este duplo esfôrço, não nos distanciou do existente como tal, nem mesmo dos seus modos: a noção de ser pretende significar o concreto e envolver atualmente, às custas de sua confusão, tudo o que existe efetivamente. A marcha para adiante, o progresso da metafísica não resultará tanto de uma análise abstrata de conceitos destacados da realidade, mas sim de uma inspeção direta desta própria realidade. A sistematização harmoniosa sob a qual se apresenta algumas vezes o conjunto das noções metafísicas não deverá nos fazer esquecer este contato primeiro e contínuo com a complexidade do dado e de seus problemas.

Se compararmos, deste ponto de vista, a metafísica de Tomás de Aquino e os grandes sistemas da história, não poderemos evitar ser surpreendidos por sua originalidade. Tanto na antiguidade, com Platão, como em numerosos escolásticos a partir de Scoto e de Suarez, ou como nos modernos, de Descartes a Hegel, o ser é concebido geralmente como uma certa natureza, como uma essência, praticamente isolada da existência, tratada como um dado abstrato; a ontologia tende então a se tornar uma pura construção conceitual afastada da realidade. Constitui-se o que se pode chamar de ontologias essencialistas. Ao passo que, com Tomás de Aquino, ainda que conservando do ser este aspecto de determinação que corresponde à sua essência, nos referimos sempre à sua atualidade última que é a sua existência concreta.

Devido à sua unidade imperfeita e à riqueza do seu conteúdo implícito, a noção de ser possui, em relação às noções científicas ordinárias, ao mesmo tempo, uma superioridade e uma inferioridade.

Uma inferioridade, de início, que advém do fato de que o conceito analógico é um conceito confuso e inadequado, que portanto nos faz atingir cada realidade de um modo imperfeito, ao passo que, de per si, o conhecimento por gênero e por diferença específica é um conhecimento preciso e distinto; esta inadequação do conceito de ser, atingindo seu máximo, no conhecimento do ser transcendente de Deus, cujo modo próprio de existir escapa ao nosso poder. Mas, por outro lado, em profundidade e em extensão, a noção metafísica de ser, como as que lhe são semelhantes, dá ao espírito um instrumento de uma outra envergadura que as ideias científicas ordinárias. Mesmo imperfeitamente, estas noções conseguem se elevar até o princípio primeiro de tudo, até Deus. A analogia, forma própria do pensamento metafísico, nos coloca de posse de um método intelectual que permite constituir uma ciência teológica autêntica. Caberá ao teólogo precisar em que condições deverá utilizar este método; foi suficiente aqui ter assinalado, ao mesmo tempo, seus limites e sua verdadeira grandeza.

Se voltarmos, do ponto de vista do método, à comparação precedente entre a metafísica de Tomás de Aquino e as grandes filosofias essencialistas da história, seremos igualmente conduzidos a assinalar diferenças de grande importância. Por uma inclinação natural, toda metafísica da essência tende a tomar a forma de um sistema rígido desenvolvendo-se por um método dedutivo. Certamente, todos os filósofos nomeados acima não realizaram efetivamente este sonho: Mas a Dialética de Platão ou a Matemática universal de Descartes não se encaminhavam neste sentido? E sobretudo com a Ética de Espinosa e a Enciclopédia de Hegel não passamos do sonho à realidade? Tudo deduzir racionalmente de um primeiro princípio! Tomás de Aquino jamais sonhou com tal coisa. Sua visão do universo, sem dúvida, é ordenada e fortemente hierarquizada e a razão preside à sua construção: mas com toda a flexibilidade da proporção analógica, com esta abertura sobre a diversidade do real que lhe permite tudo acolher e tudo colocar em seu lugar sem violentar a natureza de cada ser. Sapientis est ordinare. A verdadeira sabedoria metafísica é uma tarefa de ordem. [Gardeil]