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fantasma
quinta-feira 25 de janeiro de 2024
Uma revisão sistemática da clássica interpretação iconográfica de Panofsky e Saxl não estava entre os objetivos temáticos desse ensaio; contudo não é possível deixar de salientar quais os pontos da interpretação saxl-panofskyana que foram pouco a pouco fortemente atingidos no curso de uma pesquisa que encontrava seu espaço e sua medida? precisamente num incessante confronto com o emblema düreriano. A novidade mais importante consiste em ter reposto a síndrome melancólica no âmbito da teoria medieval e renascimentista do spiritus phantasticus (a melancolia?, em sentido? próprio, nada? mais era que uma desordem? da atividade? fantasmática, um litium corruptae immaginationis), e em tê-la consequentemente remetido para o campo? da teoria do amor? (pois o fantasma? era, ao mesmo tempo?, o objeto? e o veículo do enamoramento, e o próprio amor era uma forma? de solicitado melancolica). A afinidade entre imaginação e temperamento? melancólico havia sido registrada por Panofsky e Saxl, por ter sido explicitamente afirmada no texto de Agripa, no qual se baseava a sua interpretação, mas de algum modo? não havia sido aprofundada.
A rotação semântica que a perspectiva fantasmológica efetua na interpretação da imagem? düreriana, desde um limite? estático (a incapacidade da geometria para alcançar a metafísica) até um limite dialético (a tentativa da fantasia de se apropriar do inapropriável), permite também que se entenda corretamente o significado do morcego que sustenta a cártula com a escrita? “Melencolia? I”, e que pode ser? considerada um verdadeiro emblema menor que contém a chave do emblema maior no qual está contido. Nos Hieroglyphica de Orapollo, o morcego volante é interpretado como representação da tentativa do homem de superar com audácia a miséria da sua condição, ousando o impossível (“Imbecillum hominem lascivientem, tamen et audacius aliquid molientem, cum monstrare voluerint, vespertilionem pingunt. Haec enim etsi alas non habeat volare tamen conatur”) [“Quando querem representar? o homem debilitado pela lascívia, mas que medita com muita audácia em algo, eles pintam um morcego. E que ele, mesmo não tendo asas?, contudo tenta voar”]. [AgambenE:55-56]
Intimamente ligada à fantasia, aparece a memória, que Aristóteles define como “a posse de um fantasma como ícone daquilo de que é fantasma” (definição que permite explicar fenômenos anormais como o déjà vu e a paramnésia); e tal nexo é tão vinculante a ponto? de não se poder? ter memória sem fantasma, mesmo a respeito? das coisas? de que se tem conhecimento? intelectual?.
A função do fantasma no processo cognoscitivo é tão fundamental que se pode afirmar que ele é inclusive, em certo sentido, a condição necessária da inteligência: Aristóteles chega até a dizer que o intelecto? é uma espécie de fantasia (φαντασία τις), e repete mais vezes o princípio que dominará a teoria medieval do conhecimento e que a escolástica fixará na fórmula: nihil potest homo int eiligere sine phantasmata [o homem não pode entender nada sem fantasmas?]. [“Porque nenhum objeto parece poder existir separado das grandezas sensíveis, é nas formas sensíveis que existem os inteligíveis... Quem? não tivesse sensação alguma, não compreendería nem aprendería nada; e quando o homem contempla, necessariamente contempla ao mesmo tempo algum fantasma.” (De anima, 432a)]
Contudo, a função do fantasma não se esgota nisso. Ele cumpre papel essencial também no sonho?, que Aristóteles define exatamente como φαντάσμα τις, uma espécie de fantasma que aparece durante o sonho. Os movimentos produzidos pela sensação permanecem, de fato?, segundo Aristóteles, nos órgãos dos sentidos não só durante a vigília, mas também durante o sono?, assim como o projétil continua se movendo mesmo quando se separou do instrumento? que o pôs em movimento? [De insomniis, 459a]. E a adivinhação no sono, tão cara à Antiguidade?, explica-se graças aos fantasmas dos sonhos que nos levam a realizar, uma vez despertos, as ações que costumamos associar inconscientemente a eles, ou então, com a maior receptividade da fantasia, durante o sono ou o êxtase, aos movimentos e às emanações externas [De divinatione per somnium, 463a-464a].
Outro aspecto da teoria aristotélica do fantasma, a que convém acenar nesta altura, é a função que o mesmo cumpre na linguagem?. No De anima (420b), a respeito da fonação, Aristóteles afirma que nem todo som? emitido por um animal? é voz, mas só aquele que vem acompanhado de algum fantasma (μετά φαντασίας τίνος), pois a voz é um som significativo. O caráter semântico da linguagem está, pois, indissoluvelmente associado à presença de um fantasma, e veremos mais adiante a importância que tal associação assumirá no pensamento? medieval.
No pensamento de Aristóteles, o fantasma aparece assim no centro de uma constelação psíquica, que pode ser resumida graficamente no seguinte esquema?: [137]
Nós, modernos, talvez pelo hábito de ressaltarmos o aspecto racional? e abstrato dos processos cognoscitivos, há bom tempo deixamos de nos maravilhar com o misterioso poder da imagem interior desse inquieto povo de “mestiços” (conforme o chamará Freud ), que anima os nossos sonhos e domina a nossa vigília talvez mais do que estejamos dispostos a admitir. Dessa maneira, não se torna fácil admitirmos imediatamente a obsessiva e quase reverencial atenção que a psicologia? medieval reserva à constelação fantasmológica aristotélica que, dramatizada e enriquecida pelas contribuições do estoicismo e do neoplatonismo , ocupa um lugar central no firmamento espiritual da Idade Média. Nesse processo exegético, no qual a Idade Média esconde uma de suas mais originais e criativas intenções, o fantasma polariza-se e se converte em lugar de uma experiência extrema da alma?, na qual ela pode elevar-se até ao limite deslumbrante do divino?, ou então precipitar no abismo? vertiginoso da perdição e do mal?. Isso explica por que época alguma foi, ao mesmo tempo, tão “idólatra” e tão “iconoclasta” quanto a que via nos fantasmas “a alta fantasia” a que Dante confia a sua visão suprema e, contemporaneamente, as coptationes malae que, nos escritos patrísticos sobre os pecados capitais, atormentam a alma do acidioso, a mediadora? espiritual entre sentido e razão, que exalta o homem, ao longo da escada? mística de Jacó, referida por Hugo de São Vítor, e as “vãs imaginações” seduzindo o ânimo para o erro?, o que Santo Agostinho reconhece no desvio maniqueu dele mesmo. [AgambenE:137-138]
LÉXICO: fantasma