Cultura, seja ela um outro nome do Projeto, ou só uma projeção sua no espaço multifuncional em que homem e mundo se correlacionam, é drama, nexo dramático em cujo argumento se oculta o Projeto, enquanto as personagens se ignoram como tais, enquanto não sabem que só desempenham papéis que lhes foram distribuídos e, por isso mesmo, julgam ter a iniciativa da ação: por mais breves palavras, enquanto não sabem que representam um drama cuja intriga nenhum deles estaria capacitado de tecer. Não sabe da existência de um Projeto quem de nenhum modo [39] veio a saber que foi jogado em jogo cujas regras nem ele nem outro de seus parceiros inventou. Bem ver que não lhe pertence a iniciativa da ação, que perdeu essa iniciativa, ou mesmo que nunca a teve, é mais um ganho do que uma perda. Pelo menos, até certo ponto, e o ponto certo é este: o aperceber-se de que foi jogado num jogo resulta de se ver jogado em outro. Mas este, agora, é o que tem por regra de todas as regras a exigência de se aceitar a cultura como jogo, de consentir no prosseguimento do jogo com pleno e total reconhecimento de que ela é jogo. Por aí mais se eleva o ganho, que se cifra em que alguns homens guardam na mais recôndita intimidade de si mesmos um segredo, que o é porque, decerto, nem a todos foi confiado. Há bem poucos! Pouquíssimos são os que podem desdobrar-se em um que joga, sabendo que joga jogo alheio, e outro que joga o que supõe ser jogo seu. É claro que, dos dois, só o primeiro está no segredo do Projeto, sabe do Projeto, sabe que pertence ao Projeto, sabe que já se encontra bem instalado no Projeto, mesmo antes que ele se projete. Pior de todas as situações é a de quem não sabe nem quer saber que a cultura é jogo que tem de jogar, saiba ou não de onde ou do que procedem as regras. É, enfim, a situação paradoxal de quem suponha que o próprio homem cria a cultura que o criou, da maneira como foi, da maneira como é, da maneira como será, e que, no mesmo gesto criador, criou o mundo do homem que foi tal como foi, outro mundo do homem que é tal como é, e outro mundo ainda que será o do homem que a ser venha tal como venha a ser. [EudoroMito:39-40]
A vida do indivíduo, quando vista no seu todo e em geral, quando apenas seus traços mais significativos são enfatizados, é realmente uma tragédia; porém, percorrida em detalhes, possui o caráter de comédia, pois as labutas e vicissitudes do dia, os incômodos incessantes dos momentos, os desejos e temores da semana, os acidentes de cada hora, sempre produzidos por diatribes do acaso brincalhão, são puras cenas de comédia. Mas os desejos nunca satisfeitos, os esforços malogrados, as esperanças pisoteadas [414] cruelmente pelo destino, os erros desafortunados de toda a vida junto com o sofrimento crescente e a morte ao fim, sempre nos dão uma tragédia. [Importa aqui sublinhar, para que o leitor absorva toda a densidade do texto, que “tragédia” se escreve em alemão Trauerspiel, ou seja, ao pé da letra, jogo (Spiel) enlutado, triste (Trauer), enquanto “comédia” se escreve Lustspiel, jogo (Spiel) prazenteiro (Lust). Ou seja, tanto no luto quanto no prazer, o destino joga”, brinca com suas presas; portanto, o luto ou o prazer envolvido nessa brincadeira – pois também se pode traduzir Spiel por brincadeira – é uma carga que recai exclusivamente no plano individual, enquanto o destino, nos dois casos, brinca (Spiel) com suas, por assim dizer, marionetes, (N. T.)] Assim, como se o destino ainda quisesse adicionar à penúria de nossa existência a zombaria, nossa vida tem de conter todos os lamentos e dores da tragédia, sem, no entanto, podermos afirmar a nossa dignidade de pessoas trágicas; ao contrário, nos detalhes da vida, desempenhamos inevitavelmente o papel tolo de caracteres cômicos. [SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Primeiro Tomo. Tr. Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2005, p. 414-415]