Filosofia – Pensadores e Obras

a priori

Com esses dois termos (a priori e a posteriori) foram designados os elementos das três distinções seguintes: 1) a distinção entre a demonstração que vai da causa ao efeito e a que vai do efeito à causa; 2) a distinção entre os conhecimentos que podem ser obtidos com a razão pura e os conhecimentos que podem ser obtidos com a experiência; 3) a distinção entre tautologias e verdades empíricas.

1) A primeira distinção, que remonta à escolástica, liga-se à distinção aristotélica entre “o que é anterior e mais conhecido para nós” e “o que é anterior e mais conhecido por natureza”, distinção que Aristóteles assim esclarecia: “Dizendo anterior e mais conhecido em relação a nós, pretendo referir-me ao que está mais perto da sensação; dizendo, porém, anterior e mais conhecido absolutamente, pretendo referir-me ao que está mais longe da sensação”. E como os objetos mais distantes da sensação são os mais universais, ao passo que os mais próximos dela são os singulares, aquilo que é primeiro absolutamente, ou por natureza, é precisamente o universal (An. post., 1, 2, 72 a 1 ss.). A partir de Alfarabi, a filosofia árabe havia formulado a distinção entre a demonstração propter quide a demonstração quia, que Alberto da Saxônia depois chamou, respectivamente, de demonstrações a priori e demonstrações a posteriori. “A demonstração é dupla”, diz Alberto; “uma é a que vai das causas ao efeito e chama-se demonstração a priori, ou demostração propter quid, ou demonstração perfeita, e dá a conhecer a razão pela qual o efeito existe. A outra é a demostração que vai dos efeitos às causas e chama-se demonstração a posteriori, ou demonstração quia, ou demonstração não perfeita, e dá a conhecer as causas pelas quais o efeito existe” (An. post., I, q. 9). Com esse sentido, ambos os termos são usados durante toda a escolástica e até o séc. XVII, para indicar duas espécies de demonstração.

2) A partir do séc. XVII, por obra de Locke e do empirismo inglês, os dois termos adquirem significado mais geral: a priori passa a designar os conhecimentos que podem ser obtidos mediante o exercício da razão pura e a posteriori, ao contrário, os que podem ser obtidos pela experiência. Hume e Leibniz estão de acordo em contrapor, nesse sentido, a priori e a posteriori. Diz Hume: “Ouso afirmar, como proposição geral que não admite exceção, que o conhecimento da relação de causa e efeito não é, em nenhum caso, alcançado pelo raciocínio a priori, mas surge inteiramente da experiência, quando descobrimos que certos objetos particulares estão constantemente unidos a outros” (Inq. Cone. Underst, IV, 1). E Leibniz contrapõe constantemente o “conhecimento a priori” ao “conhecimento por experiência” (Nouv. ess., III, 3, S 15; Monad., § 76) e “a filosofia experimental, que procede a posteriori”, à razão pura”, que “justifica a priori’ (Op., ed. Erdmann, p. 778 b). Wolff exprimia, com sua costumeira clareza, o uso dominante em seu tempo dizendo: “O que aprendemos com a experiência, dizemos conhecer a posteriori; o que sabemos pelo raciocínio dizemos conhecer apriori’ (Psychol. emp., §§ 5, 434 ss.).

A noção kantiana de a priori, como conhecimento independente da experiência, mas não precedente (no sentido cronológico) à própria experiência, é, sob certo aspecto, a mesma de Leibniz e dos wolffianos. “Existem”, dizia Leibniz, “ideias que não nos vêm dos sentidos e que encontramos em nós sem formá-las, ainda que os sentidos nos deem ocasião de apercebê-las” (Nouv. ess., I, 1, § 1). Kant deu mais rigor a essa noção, distinguindo os conhecimentos a priori puros, que, além de não dependerem absolutamente de nenhuma experiência, são desprovidos de qualquer elemento empírico. P. ex., acrescentava ele, a proposição “Toda mudança tem sua causa” é uma proposição a priori, mas não é pura, porque mudança é um conceito que só pode ser extraído da experiência (Crít. R. Pura, intr., 1). Mas a originalidade da noção kantiana está na função atribuída a a priori, que não constitui um campo ou domínio de conhecimentos à parte, mas a condição de todo conhecimento objetivo. A priori é a forma do conhecimento, assim como a posteriori é o conteúdo. Em a priori fundam-se os conhecimentos da matemática e da física pura; mas o a priori por sisi mesmo não é conhecimento, mas a função que condiciona universalmente qualquer conhecimento, tanto sensível quanto intelectual. Os juízos sintéticos a priori são, com efeito, possíveis, em virtude das formas a priori da sensibilidade e do intelecto. O a priori é, para Kant, o elemento formal, isto é, ao mesmo tempo o que condiciona e fundamenta todos os graus do conhecimento; e não só do conhecimento, já que também no domínio da vontade e do sentimento subsistem elementos a priori, como demonstram a Crítica da Razão Prática e a Crítica do Juízo. A noção kantiana de a priori foi adotada ou pressuposta por boa parte da filosofia moderna. O Idealismo romântico corrigiu-a no sentido de admitir que todo o saber é apriorístico, isto é, inteiramente produzido pela atividade produtiva do Eu. Assim pensaram Fichte e Schelling. Hegel julgava que o pensamento é essencialmente a negação de um existente imediato, logo, de tudo o que é a posteriori ou se baseia na experiência. O a priori é, ao contrário, a reflexão e a mediação da imediação, isto é, a universalidade, o “estar o pensamento em si mesmo” (Enc., § 12). Mais frequentemente, na filosofia moderna, o apriori conserva o significado kantiano. E a tal significado se vincula, apesar de todas as diferenças, a noção de a priori material de Husserl. Essa noção está ligada à das ontologias regionais, pois, segundo Husserl, “por conhecimentos sintéticos a priori deveriam ser entendidos os axiomas regionais, de tal modo que haveria tantas classes irredutíveis de conhecimentos sintéticos apriori, quantas são as regiões” (Ideen, I, § 16). Ora, regiões do ser são, p. ex., os conceitos de objeto material, consciência, animalidade, sociedade, etc; e os axiomas relativos a cada uma de tais regiões implicam a referência ao seu conteúdo específico e são, por isso, materiais.

3) Na filosofia contemporânea, a existência de um a priori no sentido kantiano ou hegeliano é quase sempre negada. Diz, p. ex., Reichenbach: “Não existe nada de semelhante à auto-evidência sintética; as únicas fontes admissíveis do conhecimento são a percepção sensível e a auto-evidência analítica das tautologias” ( The Theory of Probability, p. 372). Às vezes, defendeu-se uma “concepção pragmática” do apriori, pela qual ele consistiria sobretudo nos conceitos definitórios e nas estipulações convencionais de que se vale a ciência (cf. C. I. Lewis, “A Pragmatic Conception of the ‘a priori’”, em Readings in Philosophical Analysis, 1949, pp. 286 ss.). Mas, o mais das vezes, por a priori entende-se simplesmente o enunciado tautológico ou analítico e por a posteriori a verdade empírica (v. analiticidade). [Abbagnano]

Designa geralmente que numa série ordenada se passa de um elemento anterior (prius) a outro posterior, sendo indiferente eme dita série se processe ou não no tempo. Para que a expressão a priori seja unívoca, importa que se mantenha sempre fixa a ordem de sucessão e que se indique o elemento, relativamente ao qual uma coisa é designada anterior. Um elemento pode ser a priori ou anterior (em oposição a a posteriori) segundo uma ordem temporal (ontem — hoje), ontológica (causaefeito) ou lógica (premissa — conclusão). O a priori psicológico faz parte do a priori ontológico, e compreende as condições psíquicas por vias que determinam concomitantemente a direção da atenção e a formação do juízo. — Na lógica escolástica, denominam-se a priori as demonstrações que têm seu ponto de partida nalguma coisa ontologicamente anterior, que, portanto, concluem da causa para o efeito, da essência para as propriedades. Desde Kant chama-se o priori todo conhecimento, cuja validade independe logicamente da experiência (= percepção). Não se pretende com isto negar que tais conhecimentos dependam até certo ponto da experiência, no que diz respeito ao tempo e à origem dos mesmos. Por a priori gnoseológico ou teorético-cognoscitivo entende-se o complexo de todas as condições apriorísticas do conhecimento, na medida em que este, mediante aquelas, se torna objetivamente possível. Para designar esta mais ampla noção de a priori, Kant serve-se do vocábulo transcendental. O a priori gnoseológico compreende as condições de validade do conhecimento; o a priori psicológico, as de existência. — Segundo Kant, a validade dos conhecimentos apriorísticos estriba em que, mediante eles, se fundamenta e possibilita a experiência (como série de conhecimentos universalmente válida e objetiva). Pelo que, o valor dos conhecimentos apriorísticos circunscreve-se ao domínio da experiência possível (criticismo). Pelo contrário, segundo a concepção escolástica, tem seu fundamento na intelecção das relações essenciais dos objetos. O valor absoluto de tal intelecção dentro da ordem ontológica radica, em última instância, no fato de ambos os domínios, tanto o subjetivo quanto o objetivo, se fundamentarem na mesma pura identidade do conhecimento e do ser, que caracteriza o espírito absoluto. Consequentemente, o valor objetivo das proposições apriorísticas, a despeito de dependerem geneticamente da experiência, estende-se para além desta e é absolutamente ilimitado. — A expressão a priori perde seu valor, quando empregada na acepção de “antecedentemente à crítica” = acrítico. Em tal caso, é preferível substituí-lo pelo termo “apriorístico”. — Brugger.


Embora na antiguidade e na idade média se tenha tratado o problema a que se refere esta expressão, a questão do a priori começa a ser tratada com toda a amplitude na época moderna. Um caso disso é constituído pela filosofia de Descartes. Não há neste nenhuma doutrina formal do a priori, mas a sua noção de ideia inata (Meditações Metafísicas. Os Princípios da Filosofia), aproxima-se da concepção moderna de – ideia a priori. Locke, em contra partida, faz uma crítica ao inatismo, que pode equiparar-se a uma crítica de qualquer elemento a priori no conhecimento.

Uma distinção entre tipos de conhecimento que leva à concepção de um a priori encontra-se pela primeira vez apenas em Hume e Leibniz. A distinção proposta por HumeInvestigação – de “todos os objetos da razão ou investigação humana” em relações de ideias e fatos equivale a uma distinção entre enunciados analíticos e sintéticos, respectivamente – v, analítico e sintético. Os enunciados analíticos são inteiramente a priori; não procedem da experiência nem podem dizer nada sobre a experiência ou sobre “os fatos”. Limitam-se a constituir a base de raciocínios meramente formais e descobrem-se mediante a “mera operação do pensamento”, podendo comparar-se a regras de linguagem. Por sua vez Leibniz distingue entre verdades de razão e verdades de fato. As primeiras são eternas, inatas e a priori, ao contrário das verdades de facto, que são empíricas, atuais e contingentes. “A razão— escreve Leibniz—é a verdade conhecida cuja ligação com outra verdade menos conhecida nos faz dar o nosso assentimento a esta. Mas, de modo particular, e por excelência, chama-se razão se for a causa não só do nosso juízo, mas também da própria verdade, a qual se chama também razão a priori, e a causa nas coisas corresponde à razão nas verdades. (Teodiceia). Deve ter-se, todavia, em conta que a aprioridade bem como o carácter inato das verdades de razão, não significa que estas estejam sempre presentes na mente; as verdades de razão e a priori, em rigor, aquelas que se devem reconhecer como evidentes quando se apresentam a um espírito atento.

Apesar das diferenças existentes entre a filosofia de Hume e a filosofia de Leibniz, estes autores são unânimes num aspecto: em que os enunciados a priori são analíticos e não sintéticos. Mas enquanto para Hume isso é consequência do seu carácter meramente linguístico, para Leibniz é resultado da sua preeminência sobre a experiência.

É diferente a concepção de a priori defendida por Kant. Os conceitos e as proposições a priori têm de ser pensadas com carácter de necessidade absoluta. Mas não por serem todos meramente formais. Se o fossem, haveria que desistir de formular proposições universais e necessárias relativas à natureza. A universalidade e a necessidade dessas proposições seria então apenas a consequência do seu carácter analítico. Por outro lado, os conceitos da razão não podem aplicarse à realidade em si e muito menos servem como exemplos ou paradigmas dessa realidade; qualquer metafísica baseada em meros conceitos de razão transcende a experiência e resulta numa pura imaginação racional, logo, não sintética. Kant considera que o conhecimento a priori é independente da experiência, ao contrário do conhecimento a posteriori que tem a sua origem na experiência (Crítica da Razão Pura). “Toda a mudança tem uma causa” Não é, para Kant, uma proposição absolutamente a priori, porque a noção de mudança procede da experiência. não deve entender-se a independência da experiência meramente em sentido psicológico; O problema de que Kant se ocupa na crítica da razão pura não é o da origem do conhecimento (como em Locke e em Hume), mas o da sua validade. Ora, Kant admite que pode haver juízos sintéticos a priori. O a priori não é, pois, sempre apenas analítico. se o fosse, nenhum conhecimento relativo à natureza poderia constituir-se em ciência. Mem sequer o senso comum pode prescindir de modos de conhecimento a priori. Perguntar se há juízos sintéticos a priori na matemática e na ciência da natureza, equivale a perguntar se estas ciências são possíveis, e como o são. A resposta de Kant é afirmativa em ambos os casos, mas isso deve-se a que o a priori não se refere às coisas em si (v. coisa), mas às aparências (v. aparência). Os elementos a priori condicionam a possibilidade de proposições universais e necessárias. Em contra partida não há na metafísica juízos sintéticos a priori porque o a priori não se aplica aos noumena (v. númeno).

A doutrina kantiana foi ao mesmo tempo criticada e elaborada pelos idealistas alemães pós-kantianos. Exemplo desta dupla atitude é a atitude de Hegel. Por um lado, Hegel aceita a concepção do a priori enquanto admite (pelo menos ao expor a doutrina de Kant) que a universalidade e a necessidade devem criar a priori, isto é, na razão (Lições sobre a História da Filosofia). Por outro lado, Hegel considera que as expressões a priori e “sintetizar”, usadas por Kant são vagas e até vazias (Lógica). [Ferrater]