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Sloterdijk (CRC:365-368) – o cinismo da medicina

quarta-feira 3 de junho de 2020

  

O kynismos da medicina começa no instante em que, ao ajudar, na condição de quem toma o partido da vida contra as obnubilações de doentes e poderosos, alguém coloca em ação de uma maneira frívola e realista o seu saber sobre o corpo e sobre a morte. Com frequência, o médico não lida com os sofrimentos do destino, mas com as consequências da falta de consciência, da leviandade, da arrogância, da idiotia corporal, da “burrice” e da falsa condução da vida. Contra o mal desse tipo, a cumplicidade do médico kynikos com a morte pode lhe ser uma arma útil. [...]

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Apesar da ciência, apesar da pesquisa, apesar da grande cirurgia, o médico continua se mostrando para o realismo popular atual apenas como um partidário suspeito da vida, e vê-se com uma frequência enorme o quão facilmente ele pode passar para o lado da doença. Há muito tempo uma característica da medicina aristocrática é o fato de ela se interessar mais pelas doenças do que pelos doentes. Ela está inclinada a se estabelecer de maneira autossuficiente em um universo composto por patologia e terapia. A forma de vida clínica da medicina retira dos médicos cada vez mais a orientação pelo homem saudável e destrói em suas consciências aqueles enraizamentos em um realismo afirmador da vida, que no fundo preferiria ao máximo não ter nada em comum com a medicina. [...] Antigamente se dizia que os melhores médicos eram com frequência aqueles que também gostariam de ter sido algo além de médicos: músicos, escritores, capitães, pastores, filósofos ou vagabundos. Compreendeu-se bem: quem sabe tudo sobre doenças ainda está necessariamente longe de entender a arte de curar alguém. A inclinação para “gostar de ajudar” é tão humana e agradável quanto desagradável e suspeita, quando a ajuda está relacionada a males que emergem das tendências civilizatórias de autodestruição. [...] Quanto mais doenças são evocadas pelas relações político-civilizatórias, sim, quanto mais doenças são evocadas pela própria medicina, tanto mais a prática da medicina de nossa sociedade recai em enclaves próprios ao cinismo   mais elevado, cinismo esse que se sabe um favorecedor do mal com a mão esquerda, o mesmo mal cuja cura ele produz com a mão direita. Se o doutor, como partidário escolado da vida, reconhece sua tarefa no fato de impedir as doenças de surgirem a partir de certas causas, ao invés de se estabelecer de modo parasitário e auxiliar apenas na visão das doenças como efeitos, então ele precisaria sinceramente sempre colocar de novo em debate a sua ligação com o poder e o seu uso do poder. Hoje, uma medicina que insistisse radicalmente em seu pacto com a vontade de viver precisaria forçosamente se tornar o cerne científico de uma teoria geral da sobrevivência. Ela teria de formular uma dietética política, que interviria de maneira aguda nas relações de trabalho e de vida sociais. Todavia, em geral, a medicina balança por si mesma em meio a uma miopia cínica e interpreta o seu pacto com a vontade de viver de uma maneira tão dúbia, que só se poderia falar de caso a caso e de que posição se estaria tratando no campo cínico-kynikos. Trata-se do kynismos do simples, tal como o praticava o bom pastor Kneipp? Trata-se do cinismo do complicado, tal como esse cinismo foi impulsionado pela última vez pelo professor Barnard com os seus transplantes de coração? Trata-se do kynismos de uma resistência da medicina, que se recusa a colaborar com as instalações e as mentalidades autodestrutivas? Trata-se do cinismo de uma colaboração médica, que dá plena vazão às causas, a fim de se nutrir dos efeitos? Um kynismos da vida simples ou um cinismo da morte confortável? Um kynismos que estabelece de maneira salutar certezas ameaçadoras da morte em contraposição à incerteza, à autodestruição e à ignorância? Ou um cinismo que tem alguma coisa em comum com a repressão da morte, uma repressão que age em nome de uma sustentação do sistema em sociedades ultramilitarizadas e extremamente gulosas? (SLOTERDIJK  , Peter. Crítica da Razão Cínica. Rio de Janeiro: Estação LIberdade, 2012, p. 365-368)