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Sloterdijk (MB:38-43) – a paideia a seriviço da polis
sexta-feira 5 de novembro de 2021
A educação, paideia, só se explicita de fato como teoria do adestramento aristocrata na cidade, no palco da história das ideias, e sobressai imediatamente por meio de um grotesco acento típico das grandes civilizações: o que a educação expressamente realizada de fato significa é denunciado na ideia construtivista de Platão de dizimar as famílias dos guardas, a fim de incumbir à nova elite filosófico-militar a criação de novas gerações de excelência. O gênio de Platão de criar metáforas sintomáticas se mostra com a maior expressividade nesse detalhe de A República, pois toca certeiro no mistério de funcionamento das grandes civilizações — a saber a questão de como se poderia adestrar o animal familiar e de horda, o homo sapiens, transformando-o num zoon politikon. A inesquecível tese da zoologia platônico-aristotélica tem como objetivo fazer com que de antemão surjam do Estado, em pequenos rebanhos, seres vivos, tais quais produtos de um único regaço político que produz reis e artesãos na mesma ninhada. Portanto, será possível o homem como politikós? Como o melhor homem no Estado encontra o seu lugar? Vamos dar primeiro a resposta falsa — para que se faça sentir maior necessidade da certa. De uma perspectiva plebeia moderna, que nada entende de atletismo de Estado, a réplica é lapidar - Beaumarchais colocou-lhes o seu Fígaro na boca: o que o Sr. Conde já fez de grande? “Ele se deu ao trabalho de nascer”. Com isso está estabelecido o moderno igualitarismo — como princípio de igualdade do homem diante dos úteros físicos. No entanto, a lucidez de Platão foi além do discurso vazio de Fígaro, pois ele estabelece que o fato de nascer no seio de uma família não basta para produzir o estadista.
Naturalmente, toda criança se origina de uma mãe, mas nem toda mãe se chama Atenas. A política se inicia com o renascimento da mãe física para a metafórica - o próprio Estado é como um regaço superior; ele tece o invólucro imaginário e psico-acústico que se estende sobre toda a pólis como espírito comunitário. A esfera mágica psico-acústica da pequena e antiga horda deve então ser reproduzida como círculo mundial, como cosmo. O mundo político é tudo o que chega ao interior do círculo maior. Nascer no Estado significa, portanto, entrar naquele círculo principal que poder-se-ia definir como grande regaço e, para falar tecnicamente, como configuração política do útero social. Nele repousa a resposta à pergunta sobre como se pode deixar participar centenas de milhares ou milhões de indivíduos numa coisa em comum. E fazer política não é outra coisa senão salvaguardar essa figura-regaço. É daí que se explicaram a atenção de Platão pelo papel social da música e seu sentido vigilante para a união de todos os cidadãos num corpus comum de lendas de deuses e heróis. Em sua busca de regras para o melhor Estado, ele imagina até programas de reformas para a música, poesia e teologia; ele tampouco recua diante de novos modelos de reprodução eugênica, radicalmente estatizada. Com um surpreendente grau de mobilidade lógica ele experimenta alternativas de reprodução humana — até chegar ao ponto em que desiste do princípio do nascimento do ser humano do ventre de mães naturais. Platão altera o funcionamento de mitos matriarcais do nascimento do homem a partir da Terra em prol dos objetivos de mães artificiais, políticas; numa controvertida passagem — significativamente no diálogo do estadista — ele faz aparecer o gênero a partir de um surgimento alternativo, de acordo com a doutrina de que, sob o domínio de Cronos, se realizou a corrida no sentido contrário, de forma que antigamente o sol nascia no Ocidente e os homens teriam surgido prontos do seio da Terra como anciãos e sem necessitar de formação, a fim de, no decorrer da vida, serem cada vez mais jovens e por último morrerem como fetos num regaço feminino, como se numa cova. Isso resulta na visão de uma sociedade de adultos sem problemas de incubação — o mais antigo opus commune, a repetição do homem pelo homem, parece surgida como que por milagre; então, a priori, adultos podem se encontrar iguais e livres, logo em seguida ao seu surgimento da Terra política, na ágora, a fim de trocar entre si alguns logoi sobre ta megala. Nem sempre Platão vai direto ao ponto, sua sabedoria sempre saberá como ligar o livre jogo da análise às evidências práticas. Assim, por exemplo, na esplendidamente cínica doutrina da nobre mentira de Estado, que permite a um criador político mobilizar todos os membros de uma coletividade em favor de uma doce e vantajosa ilusão compartilhada por todos. O terceiro livro da República contém um dos mais claros momentos na história de ideias políticas; aqui, com jovialidade verdadeiramente olímpica - a palavra não poderia encontrar lugar melhor—, o problema de grupos humanos díspares ao extremo mentirem-se coletivamente é promovido a tema numa unidade mais elevada; Sócrates aparece com um ousado “conto frígio”, do qual espera efeitos especiais de união estatal. O mito que Sócrates apresenta, quase sorrateiramente, afirma que todos os membros dessa cidade, por mais que pareçam desiguais, são filhos da mesma terra-mãe estatal; esta teria produzido de seu regaço filhos com uma alma de ouro, outros com uma alma de prata e por fim também os com uma de bronze. Consequentemente, diferentes quanto ao dote e valor, os cidadãos deveriam entender-se como filhos de uma mesma mãe e comprovar, para além dos limites de classes, o devido amor recíproco. Por conseguinte, está imposta a primazia da unidade, a partir de consanguinidade imaginária, diante da variedade da natureza metálica. O Estado permanece uma mãe metafórica superior, que coloca os cidadãos sob o laço social da fantasiada comunidade-regaço. Uma tal hiper-horda política seria uma variante em grande escala da configuração sócio-uterina, na medida em que consiste num grupo total a partir de muitas hordas, casas, famílias e clãs dispersos. Com isso, a política, segundo Platão, continua sendo, sempre até um certo grau, gerenciamento de fusão ou um trabalho no hiper-útero imaginário para crianças políticas. Quem podería contestar que o conto frígio foi uma digna porta de entrada para a problemática que hoje é discutida sob o nome de Corporate Identity-Policy?