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Sloterdijk (CRC:361-365) – poder médico
quarta-feira 3 de junho de 2020
Todo poder parte do corpo, dissemos acima. Como é que isso se faz valer no caso do poder da medicina? Três respostas são aqui possíveis:
1. O trabalho do médico baseia-se em sua ligação com as tendências naturais da vida para a autointegração e para a resistência à dor. Ele tem, portanto, dois aliados ao seu lado, a vontade de viver e os remédios medicinais. Se souber lidar com os dois, então tem o direito de se tomar como alguém com vocação para ajudar. O poder da medicina se legitima e ratifica na efetividade de sugestionamentos vitais (o que quer que isso possa ser) e de medidas práticas de auxílio (remédio, intervenção, dialética). Sociedades saudáveis podem ser reconhecidas sobretudo pelo modo como honram os seus ajudantes e os introduzem em estruturas sociais. Dentre as mais profundas ideias da mais antiga medicina caseira chinesa, encontra-se o hábito de remunerar o ajudante enquanto se permanece saudável e de suspender a remuneração quando se fica doente. Esse procedimento impedia de maneira astuta a ruptura do laço entre o poder do ajudante e o interesse vital das comunidades. Significativo para nós é sobretudo o fato de o exemplo chinês apontar para uma tradição de medicina popular. Pois é essa tradição que corporifica aquilo que, nos outros âmbitos valorativos, denominamos impulso kynikos. Aqui, a arte daquele que ajuda ainda se encontra sob o controle de uma consciência comunitária. Esta, por sua vez, domina a arte de lidar com o poder daquele que ajuda. Por sobre essa arte, contudo, se estende toda a linha antiga de uma medicina aristocrática, que desde sempre soube se subtrair ao controle vindo de baixo e exercido pela remuneração. Sempre preferiu a remuneração no caso do adoecimento e, com isso, sempre criou para si uma poderosa alavanca de poder. Naturalmente, aqui também reside uma perspectiva produtiva. A liberdade da medicina, quando essa liberdade existe, baseia-se justamente na autarquia econômica dos médicos, que sabem assegurar essa liberdade por meio da definição própria de seus honorários. (Nessa medida, há um paralelo entre a medicina grega e o direito romano, a saber, o princípio da consulta privada e do pagamento caso a caso, um princípio que se apoia na representação de um “contrato de tratamento”.)
2. A vontade de viver, um agente importante em toda cura, sente-se ameaçada no caso de adoecimentos “sérios” causados pela descrença. Onde quer que a tendência vital lute com a tendência para a morte, o doente necessita de um aliado, em cuja conjuração sem reservas com a vida ele possa acreditar. Assim, o doente projeta as forças de autorregeneração do corpo para o médico, que sabe erigir e fortalecer essas forças melhor do que o doente o conseguiria, sozinho em seu enfraquecimento e medo. Na crise, o paciente pode acreditar na própria vontade de vida, concentrada naquele que o ajuda, e assume assim uma vantagem decisiva diante aquele que é deixado sozinho e luta com a doença e com a dúvida ao mesmo tempo. Nesse drama, o doente que pode confiar coloca toda a sua força nas mãos daquele que o ajuda. Talvez esse modo de ver elucide uma parte do êxito totalmente espantoso da medicina mágica antiga, por exemplo, do xamanismo. No ritual mágico de cura, o xamã extrai do corpo doente o “mal”, por exemplo, sob a forma de um corpo estranho que se achava habilmente infiltrado: um verme, uma larva, uma agulha. Tais extrações, empreendidas com frequência no ápice de uma crise, nos casos exitosos constituíam o ponto de virada para o incremento do processo de autorregeneração, em certa medida coencenações extrínsecas do drama energético interno. Até os nossos dias, o médico continua retirando de tais mecanismos e de outros mecanismos semelhantes o seu status mágico, uma vez que não temos como ver de fora a desmoralização e a tecnocracia corporal cínica que o anima, e de resto ocorre de maneira cada vez mais frequente. Querer retirar totalmente tais funções mágicas do médico seria lançar ao mar o sistema médico dominante. O fato de haver entrementes boas razões mesmo para tais exigências radicais é por si um tema de séries jornalísticas. Pois quanto mais incrivelmente o pacto vital e o tema da magia curativa é corporificado pelos médicos atuais, tanto mais intensos são os impulsos que se apossam da reflexão e da busca por caminhos de autoajuda. No momento em que se toma conhecimento do modo como funciona a parte sugestionável dos processos de cura, o tempo vai paulatinamente amadurecendo as projeções da vontade de viver, que se exterioriza para os próprios pacientes. Um amplo campo de ajuda alternativa abre-se aqui.
3. O poder do médico atingiu o seu ápice no corpo do príncipe. Se o rei adoecia, então quem passava a governar de facto por um instante o “corpo do poder” era o seu médico particular. A capacidade de curar príncipes pela primeira vez elevou a medicina totalmente ao nível da medicina aristocrática. A medicina dominante é, por isso, a medicina dos governantes. Quem cura os poderosos torna-se ele mesmo um portador central do poder. Nas antigas teocracias e reinados clericais, essa conexão ainda se efetivava de maneira mais imediata por força da união pessoal entre o governante e o curador. Mais tarde, aquele que cura o governante passou a se diferenciar do príncipe, e isso certamente na mesma medida em que a medicina se transformou em uma arte com um cerne técnico empírico, que podia ser diferenciado da manipulação mágica. A palavra alemã Arzt (médico) vem, de acordo com o dicionário Duden, da assunção da palavra grega para o médico aristocrático arch-iatros, o médico superior. Assim que eram intitulados os médicos da corte de príncipes antigos, algo demonstrado pela primeira vez no caso dos selêucidas da Antióquia. Com os médicos romanos, a palavra passou para os merovíngios da dinastia franca. Vindo das cortes imperiais, então, o título foi transferido para os médicos particulares de grandes figuras intelectuais e mundanas, e tornou-se uma designação profissional genérica na época do antigo alemão culto. Significativo nessa perambulação da palavra é sobretudo o fato de, com o título de médico, ter sido reprimida uma designação mais antiga para os especialistas em cura: o título lachi, cuja tradução literal seria: “aquele que trata.” A mudança dos termos fala em favor de uma mudança das práticas: a medicina aristocrática quase-racional começa a reprimir a medicina mágica. Reflexivamente, o enunciado do Duden, de acordo com o qual a palavra Arzt (médico) nunca teria se tornado realmente “popular”, pode concordar com isso, mas a palavra Doktor (doutor) está certamente na boca de todos desde o século XV. O “doutor”, como aquele erudito que conjura a doença, adquire até hoje mais confiança do que o archiater, o médico aristocrático. De fato, há uma espécie de medicina que permaneceu desde o início reconhecível como sombra duvidosa do poder.