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Sloterdijk (E1:116-119) – humano = corpo; coração = bomba

terça-feira 16 de junho de 2020

  

Enquanto o misticismo da Contrarreforma, em sua defesa da interioridade mágica e religiosa, envolvia-se em jogos de linguagem cardioteológicos cada vez mais frenéticos, um irresistível desencantamento anatômico do coração havia sido posto em marcha pela pesquisa médica nas universidades europeias. A inicialmente proscrita ciência da dissecção de cadáveres desenvolveu, entre os séculos XVI e XVII, uma nova imagem do ser humano como uma miraculosa manufatura de órgãos. Ao lado dos teólogos, os médicos ergueram doravante sua voz e exigiram uma cátedra pública para tratar das questões sobre a natureza humana. As mesas de dissecção dos anatomistas transformaram-se nos altares das novas ciências do homem, os cadáveres foram promovidos a mestres-assistentes da antropologia. Eles ensinaram com grande autoridade que os homens, antes de qualquer relação com seus semelhantes, são, em primeiro e último lugar, corpos individuais desconectados — corpos que existem em sua unidade funcional original e individualidade orgânica, para só posteriormente, e de forma secundária, se integrarem a grupos sociais. É por isso que, entre as origens do moderno individualismo, deve-se tomar em consideração também um influente fator anatômico. A posição absoluta do indivíduo não se nutre apenas das modernas concepções filosóficas do sujeito e dos interesses dos burgueses proprietários, mas igualmente desse individualismo anatômico no qual o cadáver humano é compreendido como um corpo sem relações. Sob o olhar analítico do anatomista, o corpo humano individual se apresentava como uma oficina autônoma da vida, algo como a coisa em si fisiológica. De fato, nas entranhas abertas do cadáver, não há qualquer indicação de uma existência em íntima relação com outras existências.

Enquanto nos países da reação católica as igrejas barrocas se enchiam de imagens votivas de corações ardentes, os anatomistas, em outro cenário, processavam o coração feudal. Eles lançaram um discurso cardiológico que era pura subversão, ao rebaixar o coração de um Sol para uma máquina, de um rei dos órgãos para um funcionário encarregado da circulação sanguínea. Padres, como João Eudes, podiam levar o culto dos sagrados corações de Cristo e de Maria às massas do início da modernidade; mas seu contemporâneo William Harvey não deixou, por isso, de ir ao encalço dos mistérios do funcionamento do coração dessacralizado. Cento e cinquenta anos após a ruptura de Harvey, o processo do desencantamento cardíaco havia progredido tanto que já se podiam anunciar reabilitações românticas do perdido mundo mágico do coração; no início do século XIX, o esfriamento geral havia atingido um grau tão crítico que era preciso recorrer a essa restauração cordial, cujo exemplo, na Alemanha, foi dado sobretudo por Wilhelm Hauff, com seu satírico conto do coração frio. Desde então, a luta pelo ajuste da temperatura do mundo faz parte das constantes dramatúrgicas da modernidade literária e midiática. Após a virada da era absolutista para a burguesa, manifestou-se, em uma ampla seção da intelligentsia das novas classes médias, particularmente entre médicos, engenheiros, empreiteiros de ocasião e homens de letras, uma propensão a explicar o mundo e a vida em seu todo segundo os conceitos diretores da fisiologia e da mecânica; e, no decurso de uma inevitável contraposição, os espíritos de orientação sintética e holística exigiram os direitos térmicos de mundos interiores refrigerados e excessivamente públicos.