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Sloterdijk (MB:14-17) – pertença
quarta-feira 1º de julho de 2020
Como já esclarece um lacônico exame de documentos antigos de caráter crítico e político existem bons motivos para a tese de que, pelo menos desde a Idade Axial [1], as pessoas estão sentadas sobre uma bomba-relógio: a saber, sobre o conceito inclusivo de espécie, cuja força explosiva se descarregou durante os últimos dois ou três mil anos de reações em cadeia, melhor conhecidas como história mundial, história das missões, imperialismo. O conceito de humanidade oculta um paradoxo ativo que pode ser levado à fórmula: pertencer-se com aqueles com os quais não se pertence. (Pode-se conceber essa frase também temporalmente: quanto mais tempo acumularmos experiências com quem pertencemos, tanto mais clara aparecerá a evidência de que não temos qualquer capacidade de pertença.) De acordo com seus efeitos essa frase contém ao mesmo tempo um evangelho e uma notícia aterradora. A história das ideias políticas pode ser lida como uma série de tentativas para atenuar o paradoxo político da espécie. Por isso, na politologia clássica trata-se sempre da repressão dos dramas que devem eclodir caso os horizontes de pertença de grupos e povos se expandirem a dimensões imperiais e, para além disso, do mundo e da espécie em geral.
À luz dessas reflexões, não espanta que a história das ideias políticas sempre tenha sido uma história dos fantasmas da pertença - no que a expressão fantasma não poderia ser lida, no sentido crítico-imagético, como mera aparência ou ilusão, mas sim entendida como teoria da imaginação ativa e concebida como loucura demiúrgica, ideia auto-realizável e ficção operacional. Seria oportuno lembrar aqui o promissor conceito da autopoiesis, com o qual discípulos da ciência não-cristã querem finalmente tornar imaginável, e de maneira precisa, uma criação sem criador; no entanto, em respeito à rigidez do conceito, renuncio a colocar ensaisticamente em jogo a expressão. Em primeiro lugar, pode-se ainda dizê-lo de outro modo: assim como desde Cocteau todo jovem sabe que Napoleão foi um maluco que presumia ser Napoleão, politólogos sabem, desde Castoriadis , Claessens e Luhmann, que sociedades serão sociedades enquanto presumirem convictamente serem sociedades. A seguir, investigarei três conjunções de ideias concretas constitutivas da sociedade, que possibilitaram a algumas centenas, senão milhares de gerações anteriores à nossa, a arte de pertencer ao coletivo. São três formações cuja sucessão pode ser apresentada como um progresso da abstração real - como se o conceito de humanidade tivesse esperado centenas de milhares de anos, como se um gênio esperasse dentro da garrafa empoeirada, até finalmente, na Idade Axial, aparecerem os primeiros universalistas, tão levianos a ponto de sacar a rolha — com consequências que desde então têm dado trabalho a teólogos, filósofos-historiadores e diretores do Fundo Monetário Internacional. A partir das três imagens quero mostrar como, da madeira torta da pré-humanidade de hordas, foram inicialmente talhadas as antigas populações de caçadores e colhedoras; como então, na era agrocultural, os impérios e reinos locais foram dispostos em camadas superpostas; e por último, no industrialismo, como uma sociedade de trânsito internacional que tende à desfronteirização começa a criar relações planetárias pós-imperiais. Um pintor teria de dar-se tempo para apresentar uma espécie de teoria em três etapas da história da humanidade, inspirada na metáfora da navegação. Nada seria mais oportuno do que apresentar o primeiro período sob o símbolo de jangadas, nas quais pequenos grupos de pessoas navegam através de gigantescos espaços de tempo; o segundo, como era da navegação costeira, com galeras nacionais e regatas de dominação, saindo para arriscadas e distantes metas por meio de uma visão de grandeza psiquicamente ancorada na Santa Ordem Masculina; e o terceiro, como era dos super-ferries que, quase inconduzíveis pela enormidade, trafegam por um mar de afogandos, com turbulências trágicas se abatendo no casco do navio e aflitas conferências a bordo sobre a arte do possível. Tudo isso minuciosamente executado resultaria num afresco histórico e mundial de formatos hegelianos — para total irritação daqueles que acolheram aliviados a tese de que grandes narrativas não seriam mais possíveis. No que nos diz respeito, teremos de nos contentar em delimitar os estágios da paleo-política, da política clássica e da hiperpolítica com traços extremamente rudimentares. Resta acrescentar que esse esboço está ligado à reconstrução lógica hegeliana da história do mundo e do espírito apenas por dois finos fios — a preferência pelo número três e o intangível lema: “Tanto pior para os fatos”.
[1] Conceito emprestado de Karl Jaspers. (N.E.)