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Schopenhauer (MVR1:28-29) – filosofia à mercê do mundo

sexta-feira 24 de setembro de 2021

  

Pois, unir a coisa com a aparência da coisa é difícil, quando não impossível. Mas justamente esse é o curso deste mundo de carências e necessidades, ou seja, que tudo tem de lhes servir e estar submetido. Por isso, precisamente, o mundo não é constituído de tal modo que, nele, um empenho nobre e sublime, como aquele em favor da luz e da verdade, siga o seu caminho próprio, sem obstáculos, e exista por si. Mas, mesmo quando semelhante empenho se pôde fazer valer e, por aí, o seu conceito foi introduzido, logo os interesses materiais, os fins pessoais se apossam dele, para torná-lo instrumento ou máscara próprios. Em conformidade com isso, após Kant   ter devolvido à filosofia o seu prestígio, ela de imediato teve de se tornar, a partir de cima, instrumento de fins estatais e, a partir de baixo, de fins pessoais; embora, diga-se, nesse caso não se trata dela, mas de seu sósia. Uma tal situação não nos deve surpreender, pois a inacreditável maioria dos homens, de acordo com a sua natureza, só é capaz de fins materiais; sim, não pode conceber outros. Por conseguinte, o empenho pela verdade é demasiado excêntrico para que possamos esperar que todos, muitos ou alguns tomem parte dele. Caso se observe, como hoje na Alemanha, uma atividade notável, um esforço geral, discursos e escritos em matéria de filosofia, é permitido com certeza supor que, a despeito de todos os semblantes e afirmações, o verdadeiro primum mobile, [1] a mola impulsara secreta de tal movimento, é tão-só de natureza real, não ideal, vale dizer, o que se tem em vista são interesses pessoais, burocráticos, eclesiásticos, estatais, em uma palavra, materiais; por consequência, meros fins partidários colocam em vigoroso movimento as tantas penas de pretensos filósofos. Por conseguinte, intenções, não intelecções, são a estrela-guia de tais tumultuadores, a verdade sendo a última coisa ali pensada. Porém, esta não encontra partidários. Antes, ela pode percorrer de maneira tão calma e insuspeita o seu caminho no meio do tumulto filosófico, como durante a noite invernal do século mais obscuro, envolta na mais rígida fé da Igreja, quando apenas como doutrina secreta era comunicada a poucos adeptos, ou confiada somente ao pergaminho. Sim, gostaria de dizer: época alguma poderia ser mais desfavorável à filosofia do que aquela na qual é maltratada, de um lado, escandalosamente como instrumento de Estado, de outro, como meio de sobrevivência. Ou alguém acredita que, em meio a tal agitação e tumulto, a verdade, da qual ninguém se ocupa, virá a lume? A verdade não é uma huri [2], que se joga ao pescoço de quem não a deseja; antes, é uma donzela tão difícil que mesmo quem tudo lhe sacrifica ainda não pode estar certo de seu favor. [SCHOPENHAUER  , Arthur. O mundo como vontade e como representação. Primeiro Tomo. Tr. Jair Barboza. São Paulo  : Editora UNESP, 2005, p. 28-29]


Ver online : O Mundo como Vontade e como Representação I


[1“Primeiro motor.” (N. T.)

[2NT: belas virgens que, segundo o Alcorão, desposarão no paraíso os fiéis muçulmanos.