No Eutífron, ou da Piedade, Sócrates, chamado ao tribunal, encontra Eutífron que levou o pai perante a justiça porque este deixou morrer na prisão um escravo assassino; para justificar o seu ato, que provocou a indignação dos seus pais, Eutífron cita o exemplo de Zeus que mutilou o seu próprio pai porque este devorava os filhos. Mas Sócrates não se contenta com exemplos de piedade, pergunta ao jovem o que é que este entende por «piedoso» e este responde-lhe: «Aquilo que agrada aos deuses.» Mas Sócrates nota que os deuses estão em desacordo perpétuo e que se a conduta de Eutífron podia ter o assentimento de Zeus, não teria com certeza o de Cronos. O problema está portanto em saber se uma coisa é piedosa se for amada dos deuses ou se é amada dos deuses porque é piedosa. Assim, não se valida um ato refugiando-se preguiçosamente por detrás de ordens divinas, não é fora dele mas sim nele que devemos ir buscar aquilo que fundamenta o seu valor. [Jean Brun]
Primeiramente, Eutífron apresenta seu caso como uma ilustração da natureza piedoso. Sócrates não tem dificuldade em mostrar que esta não é uma definição, mas um exemplo. Foi então que Eutífron propôs uma segunda definição: “O que é caro aos deuses é pio, enquanto o que não é caro a eles é ímpio. A princípio, Sócrates leva Eutífron a admitir que sua definição deve ser válida para “todos” os deuses ao mesmo tempo; em seguida, ele se lança a uma refutação particularmente sutil da segunda formulação que resulta dessa precisão e que implica a autonomia dos piedosos em relação aos deuses. A piedade existe por si mesma e seu conteúdo não depende da boa vontade dos deuses. Em suma, existe uma “forma” de piedade – seja esta ou não uma primeira alusão à doutrina das formas inteligíveis, como alguns comentaristas acreditam. Depois de um interlúdio, Sócrates se oferece para ajudar Eutífron explorando a hipótese de que “tudo o que é piedoso é necessariamente justo”. É necessário também determinar em que consiste a justiça que corresponde à piedade. Eutífron responde que se trata da cura (therapeia) devida aos deuses. É então que Sócrates se propõe a definir esse cuidado como um serviço (hyperetike). Mas, no grego antigo, o termo contém uma ambiguidade, como é o caso do francês, conforme seja utilizado na expressão “fazer o serviço” ou na expressão “prestar serviço”; no primeiro caso, o serviço visa apenas agradar, enquanto no segundo ajuda a produzir um resultado. Ora, Eutífron entende o termo no primeiro sentido, enquanto Sócrates o entende no segundo. Constrangido e chocado com esta má fé, Euthyphron propõe uma nova definição: “a piedade consiste em saber dizer e fazer o que agrada aos deuses, nas orações e nos sacrifícios”. Mas a última definição, como Sócrates aponta, é apenas uma nova formulação da segunda que já foi refutada. [BRISSON, Luc (dir). Platon. Oeuvres complètes. Paris: Flammarion, 2012, p. 395-396]