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Derrida (2016:454-456) – logos na tradição cristã

terça-feira 13 de fevereiro de 2024

  

Mais interessante ainda para nós, nesse contexto, seria o modo como Heidegger  , no mesmo movimento interpretativo — e a interpretação do logos também é uma espécie de exercício de [454] força ou de violência, de Gewalt —, [o modo como Heidegger] situa e interpreta o conceito cristão de logos no Novo Testamento, aquele mesmo que eu evoquei no começo quando citei o incipit do Evangelho de João, “En arche ên o logos. In Principium erat verbum [No começo era o verbo (logos) e o logos era Deus]”. Prudente, Heidegger nota que seria preciso distinguir aqui entre os Sinópticos e o Evangelho de João, mas ele considera que, para o essencial, no fundo (Grundsätzlich), o logos neo-testamentário não significa, como em Heráclito  , por exemplo, o ser do ente (das Sein des Seienden), a reunião das forças antagonistas (die Gesammeltheit des Gegenstrebigen). O logos de João não significa o ser do ente ou aquilo que mantém junto os contrários, mas designa um só ente particular (“ein besonderes Seiendes”: Heidegger sublinha “um só”), a saber, o filho de Deus, em sua função de mediador entre Deus e os homens.

Trata-se, além disto, de uma herança judia, esse acidente do logos, essa mudança de rumo que afasta o logos de sua originariedade grega, uma vez que, coisa bastante rara em Heidegger, ele julga necessário, em uma frase, identificar, descobrir, mesmo denunciar, nessa representação do logos como mediador, a filiação ou a influência daquilo que ele chama de uma representação, “aquela da filosofia judaica da religião (diejenige der judischen Religionsphilosophie)”, [ele não diz a religião judaica, mas a filosofia judaica da religião,] aqui aquela de Philon  , o judeu. Esse, em sua doutrina da criação, nos lembra Heidegger, tinha com efeito atribuído ao logos uma função de mesites, de mediador. Essa leitura do logos evangélico sob a influência filosófica greco-judaica, sob a influência do judaísmo helenista, em suma, nos interessa duplamente para tentar colocar ordem no chaveiro de nossos textos canônicos. Por um lado, porque nessa apropriação cristã do logos entra em cena o comando performativo; por outro lado, porque se trata da vida (da vida como zoe).

Como se dá isso?

A. Pois bem, por um lado, então, primeiramente, na tradução da Septuaginta, na tradução daquilo que se chama de o Antigo Testamento, logos é o nome dado à palavra de Deus como comando [455]
(Befehl, Gebot). Os dez mandamentos são traduzidos por “oi deka logoi”. Trata-se, como se o denomina, do Decálogo. E logos significa kerux, nos lembra também Heidegger, aquele que proclama em alta voz, de onde vem o kerigma, a proclamação santa, e logos significa também aggelos, o arauto, o mensageiro que transmite as ordens e os comandos, ou a boa nova do Evangelho. Logos tou staurou, o logos da cruz é a palavra vinda da cruz. O Evangelho da Cruz é o Cristo ele mesmo.

B. E, por outro lado, em segundo lugar, então, o Cristo é o logos da redenção [der Logos der Erlösung), o logos da vida eterna, o logos da zoe [logos] des ewigen Leben, logos zoes [1]). O Cristo é nesse sentido, mas Heidegger não diz isso, mas eu creio poder me autorizar a isso seguindo sua interpretação, não apenas um judeu, e não apenas, isso é bem conhecido, por suas origens, mas um judeu determinado como logos mesites a partir de uma apropriação judaica (Philon) do logos grego, mas um judeu zoológico, uma vez que é um judeu que reúne em sua pessoa, enquanto filho de Deus, logos e zoe. E ele não é zoológico apenas por causa do cordeiro sacrificial, por causa do cordeiro pascal   dos judeus ou do cordeiro místico que dissipa os pecados do mundo. È, então, nesse sentido também que, unindo em um mesmo corpo ou em um mesmo conceito o logos e a vida do vivente, logos e zoe, uma zoo-logia ou uma logo-zoie se impõe. Ela terá, segundo Heidegger, imposto sua autoridade, inclusive sua soberania, sua predominância hegemônica tanto sobre a interpretação originária do logos grego quanto sobre a definição aristotélica do homem como zoon logon echon, o animal que possui o logos. Quanto a ele, ao Cristo, enquanto homem, ele não tem apenas o logos, ele é o logos. Encarnado. Ele encarna o logos que ele tem.


[DERRIDA, Jacques. A besta e o soberano (Seminário) : vol I (2001-2002). Tr. Marco Casanova. Rio de Janeiro: Via Verita, 2016]


[1M. Heidegger, Einführung in die Metaphysik, op. cit., p. 103; tr. fr., p. 148.