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Derrida (1987:32-36) – Geist

terça-feira 20 de junho de 2023, por Cardoso de Castro

  

Marcondes Cesar

Que se chama então de espírito, Geist?

No Sein und Zeit, trata-se, de início, de uma palavra cujo significado permanece mergulhado numa espécie de obscuridade ontológica. Heidegger   o recorda e pede, quanto a isto, a máxima vigilância. Essa palavra remete a uma série de significados que têm um traço comum: opor-se à coisa, à determinação metafísica da coisidade e principalmente à coisificação do sujeito, da subjetividade do sujeito, no seu enfoque cartesiano. É a série da alma, da consciência, do espírito, da pessoa. O espírito não é a coisa, não é o corpo. Bem entendido, essa determinação subjetiva do espírito é o que uma delimitação (Abgrenzung) deve expor, poder-se-ia dizer liberar a analítica existencial do Dasein. Aqui se vê assinalar a tarefa de preparar um tratamento filosófico da questão “Que é o homem?”. É preciso lembrar que ela precede (liegt vor, sublinha Heidegger) toda biologia, toda antropologia, toda psicologia. Poder-se-ia dizer toda pneumatologia, este outro nome que Hegel dá à psicologia racional, que ele critica aliás também como “metafísica abstrata do entendimento” [1]. [24]

A analítica existencial deve, em particular, marcar distância perante duas tentativas, duas tentações também, posto que se poderia correr o risco de ver uma genealogia onde haveria um salto, uma ruptura, em todo o caso, uma problematização radical.

De um lado, nos perderíamos — seria irreführend — se considerássemos o cogito cartesiano como o bom exemplo histórico, o precedente exemplar que abre caminho à analítica existencial. Esta põe a questão ontológica do sum que Descartes   teria deixado totalmente fora de cogitação ou fora de lugar (völlig unerörtet) (parágrafo 10, p. 46). Teria sido necessário determinar o ser do sum, para definir em seguida o modo de ser de suas cogitationes. Partindo, como Descartes faz, de um ego e de um sujeito imediatamente dados, deixa-se escapar a fenomenalidade do Dasein (parágrafo 10, p. 46). A acusação visa também a fenomenologia do espírito e, em silêncio, a fenomenologia transcendental e o cogito husserliano. Enquanto não a submetemos a um esclarecimento ontológico, a ideia do sujeito continua a participar da posição (Ansatz) de um subjectum ou de um hypokeimenon, portanto de qualquer substância ou substrato, mesmo que, no plano apenas ôntico, oponha-mo-nos ao que se poderia chamar Seelensubstanz, ao substancialismo psíquico ou a toda a reificação da consciência (Verdinglichung des bewusstseins) (parágrafo 10, p. 46). Porque, para rejeitar a coisificação ou a substancialização, [25] gasto corrente na época do Sein und Zeit, seria preciso esclarecer ainda a proveniência ontológica daquilo que se entende por “coisa”, realidade ou coisidade (Dinglichkeit). Na falta de se ter esclarecido a proveniência ontológica da coisidade, a fortiori, da substancialidade, tudo o que se entende “positivamente” (positiv) quando se fala de ser não-coisificado (dem nichtverdinglichten Sein) do sujeito, da alma, da consciência, do espírito, da pessoa etc permanecerá ontologicamente problemático. A esta série, Heidegger já acrescentara o eu e a razão. É óbvio que o inconsciente pertence ao mesmo conjunto. Antes, no parágrafo 6, intitulado “A tarefa de uma desconstrução (Destruktion) da história da ontologia” (principalmente p. 22).

Geist faz parte então da série das não-coisas, do que se pretende, em geral, opor à coisa. É o que não se deixa de modo nenhum coisificar. Mas enquanto o ser daquilo que se entende por coisa não está ontologicamente esclarecido — e não o será nem por Descartes, nem por Husserl  , nem por quem quer que tenha recomendado não coisificar o sujeito, a alma, a consciência, o espírito, a pessoa — esses conceitos permanecem problemáticos ou dogmáticos. Pelo menos permanecem assim do ponto de vista de uma analítica existencial do Dasein. Todas essas palavras, e pois a palavra espírito, podem certamente designar campos da fenomenalidade que uma fenomenologia poderia explorar. Mas só podemos utilizá-los assim, tornando-nos indiferentes a toda a questão sobre o ser de cada um desses entes.

Esses termos e esses conceitos não têm lugar numa analítica do Dasein, que busca determinar o ente que somos. Heidegger anuncia então que vai evitá-los (vermeiden). Para dizer o que somos, quem somos, parece indispensável evitar todos os conceitos da série subjetiva ou subjetal: em particular o de espírito (p. 46). [26]

Original

Qu’appelle-t-il donc esprit, Geist?

Dans Sein und Zeit, il s’agit d’abord d’un mot dont la signification reste plongée dans une sorte d’obscurité ontologique. Heidegger le rappelle et demande à cet égard la plus grande vigilance. Ce mot renvoie à une série de significations qui ont un trait commun : s’opposer à la chose, à la détermination métaphysique de la choséité, et surtout à la chosification du sujet, de la subjectivité du sujet dans sa supposition cartésienne. [32] C’est la série de l’âme, de la conscience, de l’esprit, de la personne. L’esprit n’est pas la chose, l’esprit n’est pas le corps. Bien entendu, cette détermination subjective de l’esprit, c’est ce dont une délimitation (Abgrenzung) doit dégager, on pourrait dire libérer l’analytique existentiale du Dasein. Celle-ci se voit assigner la tâche de préparer un traitement philosophique de la question « Qu’est-ce que l’homme? ». Il faut rappeler qu’elle précède (liegt vor, Heidegger le souligne) toute biologie, toute anthropologie, toute psychologie. On pourrait dire toute pneumatologie, cet autre nom que Hegel donne à la psychologie rationnelle qu’il critique d’ailleurs aussi comme « métaphysique abstraite de l’entendement ». [2]

L’analytique existentiale doit en particulier marquer sa distance au regard de deux tentatives, deux tentations aussi, puisqu’on pourrait risquer de voir une généalogie là où il y aurait plutôt un saut, une rupture, en tout cas une problématisation radicale. [33]

D’une part, on s’égarerait — ce serait irreführend — si on considérait le cogito cartésien comme le bon exemple historique, le précédent exemplaire qui ouvre la voie à l’analytique existentiale. Celle-ci pose la question ontologique du sum que Descartes aurait laissée totalement hors de question ou hors lieu (völlig unerörtet [§ 10, p. 46]). Il aurait fallu déterminer l’être du sum pour définir ensuite le mode d’être de ses cogitationes. En partant, comme l’aurait fait Descartes, d’un ego et d’un sujet immédiatement donnés, on manque la phénoménalité du Dasein [Ibid]. L’accusation vise aussi la phénoménologie de l’esprit et, en silence, la phénoménologie transcendantale et le cogito husserlien. Tant qu’on ne l’a pas soumise à un éclaircissement ontologique, l’idée de sujet continue de participer de la position (Ansatz) d’un subjectum ou d’un hypokeimenon, donc de quelque substance ou substrat, même si, sur le plan seulement ontique, on s’oppose à ce qu’on pourrait appeler « Seelensubstanz », au substantialisme psychique ou à toute réification de la conscience (Verdinglichung des Bewusstseins [Ibid]). Car pour rejeter la chosification ou la substantialisation, geste courant à l’époque de Sein und Zeit, il faut encore éclairer la provenance ontologique de ce qu’on entend par « chose », réalité ou choséité (Dinglichkeit). A défaut d’avoir éclairci la provenance ontologique de la choséité, a fortiori de la substanti alité, tout ce qu’on entend « positivement » (positiv) lorsqu’on parle de l’être non [34] chosifié (dem nichtverdinglichten Sein) du sujet, de l’âme, de la conscience, de l’esprit, de la personne, etc., restera ontologiquement problématique. A cette série, Heidegger avait déjà ajouté le je et la raison. Il va de soi que l’inconscient appartient au même ensemble. C’était plus haut, dans le § 6 intitulé « La tâche d’une déconstruction (Destruktion) de l’histoire de l’ontologie » [3].

Geist fait donc alors partie de la série des non-choses, de ce qu’on prétend en général opposer à la chose. C’est ce qui ne se laisse d’aucune façon chosifier. Mais tant que l’être de ce qu’on entend par chose n’est pas ontologiquement éclairci — et il ne le serait ni par Descartes ni par Husserl, ni par quiconque aura recommandé de ne pas chosifier le sujet, l’âme, la conscience, l’esprit, la personne—, ces concepts restent problématiques ou dogmatiques. Du moins le restent-ils du point de vue d’une analytique existentiale du Dasein. Tous ces mots, et donc celui d’esprit, peuvent certes désigner des domaines de phénoménalité qu’une phénoménologie pourrait explorer. Mais on ne peut les utiliser ainsi qu’en se rendant indifférent à toute question sur l’être de chacun de ces étants.

Ces termes et ces concepts n’ont donc aucun droit dans une analytique du Dasein qui cherche à déterminer l’étant que nous sommes nous-mêmes. Heidegger annonce alors qu’il va les éviter (vermeiden). Pour dire ce que nous sommes, qui nous sommes, il paraît indispensable [35] d’éviter tous les concepts de la série subjective, ou subjectale : en particulier celui d’esprit (p. 46).


[1Introduction à la Philosophie de l’esprit, na Encyclopédie des Sciences philosophiques en abrégé, parágrafo 378, trad. M. de Gandillac, Gallimard, p. 349. Na mesma introdução, Hegel define a essência do espírito como liberdade e como capacidade, na sua determinação formal, de suportar o sofrimento infinito. Creio dever citar esse parágrafo para antecipar o que será dito mais adiante por Heidegger sobre o espírito, a liberdade e o mal: “É por isso que a essência do espírito é formalmente a liberdade, a negatividade absoluta do conceito como identidade consigo. Segundo essa determinação formal, é preciso fazer abstração de tudo o que é exterior e da sua própria exterioridade, até de sua presença; ele pode suportar a negação de sua imediatez individual, o sofrimento infinito, isto é, conservar-se afirmativo nesta negação e ser idêntico a si mesmo. Essa possibilidade é, em si mesma, a universalidade abstrata do espírito, universalidade que-existe-por-si-mesma” (parágrafo 382, trad., p. 352).

[2Introduction à la Philosophie de l’esprit, dans l’Encyclopédie des sciences philosophiques en abrégé, § 378, tr. M. de Gandillac, Gallimard, p. 349. Dans la même introduction, Hegel définit l’essence de l’esprit comme liberté et comme capacité, dans sa détermination formelle, de supporter la souffrance infinie. Je crois devoir citer ce paragraphe pour anticiper sur ce qui sera dit plus loin de l’esprit, de la liberté et du mal pour Heidegger : « C’est pourquoi l’essence de l’esprit est formellement la liberté, la négativité absolue du concept comme identité avec soi. Selon cette détermination formelle, il peut faire abstraction de tout ce qui est extérieur et de sa propre extériorité, de sa présence même; il peut supporter la négation de son immédiateté individuelle, la souffrance infinie, c’est-à-dire se conserver affirmatif dans cette négation et être identique pour lui-même. Cette possibilité est en elle-même l’universalité abstraite de l’esprit, universalité qui-est-pour-elle-même. » (§ 382, trad., p. 352.)

[3Notamment p. 22.