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Zarader (2000:225-227) – Objeções de Derrida à questão do espírito [Geist] em Heidegger
quarta-feira 30 de outubro de 2024, por
Primeiro momento. Não consiste evidentemente para Derrida em opor ao texto heideggeriano um qualquer «fora» que teria negligenciado (por exemplo o pensamento judeu); mas sim relembrar, que aquilo que é deixado desta forma fora de jogo, pertence de pleno direito ao «dentro» — e que nesse sentido, não o nomear é pura e simplesmente evitá-lo. «O Evitar» [1] que Derrida descobre a um duplo nível. Por um lado, Heidegger não reconhece, no espírito enquanto chama, uma determinação efectivamente mais originária do que o pneuma e o spiritus, mas que não deixa de ocupar menos lugar na linguagem e na história: o da ruah hebraica (e daí mais amplamente, o de «qualquer pensamento judeu enquanto pensamento inesgotável do fogo» [2]. Mas por outro, se for possível, é por Heidegger ter previamente desconhecido o elo intrínseco (nomeadamente da tradução) entre as determinações grega e latina que julga, justamente, derivadas, e a determinação hebraica, que viríam antes delas e de pelo menos em parte dependiam dela. Derrida relembra por exemplo, a que ponto são numerosos «nos Evangelhos, os indícios de uma pneumatologia que tem relações de tradução inapagáveis com a ruah» [3] — essa ruah que «o grego, e depois o latim das Escrituras, tiveram de traduzir por pneuma e spiritus» [4].
Duplo desconhecimento então: desconhecimento daquilo que devem às línguas consideradas (grego e latim), e também ao Ocidente, [225] para uma outra língua nunca nomeada (o hebreu); desconhecimento — menos explicitamente sublinhado por Derrida, mas que deriva necessariamente do ponto anterior — de tudo aquilo que a determinação exumada pelo próprio Heidegger deve a esta língua (e ao universo do pensamento que daí deriva). Este duplo desconhecimento levou Heidegger a afirmar que uma determinada essência do espírito, mais original que a sua essência greco-latina, permaneceu inominada na história e acabou por ser dita apenas em alemão, embora já tivesse encontrado um nome e um lugar nesta história, visto que começou por ser dita em hebreu.
Mas a ruah é apenas aqui um sintoma. Se não é reconhecida como palavra (e ainda menos como palavra de origem) do espírito, é porque o hebreu não aparece como língua (e ainda menos como língua de origem) do pensamento.
Não é apanhado pelo «triângulo historial» [5] onde se joga o destino do Ocidente, triângulo desenhado pelas três línguas, grega, latina e alemã.
Se este triângulo está desta forma fechado por Heidegger permanecendo por direito aberto, isso significa que só «se fecha, ao que parece, pelo acto de uma brutal exclusão» [6]. Falar em exclusão, é indicar que o triângulo grego-latim-alemão não é a história; desenha a concepção heideggeriana da história, ou seja a estrutura daquilo que Heidegger apresenta como historialidade em geral. Mas ao mesmo tempo, esse plano sob forma de fecho é no mais alto nível paradoxal visto que desenvolvendo tal como o faz a essência do espírito como fogo, Heidegger deixou de facto um lugar a uma determinação que pertence à história, excedendo os limites daquilo que coloca como historialidade. Isso quer dizer — apesar de Derrida não o diga tão claramente — que Heidegger voltar a fechar aquilo que porém contribuiu a estender. Desenvolveu do ponto de vista do pensamento, aquilo que volta porém a fechar, no ponto de vista da atribuição, ou seja: imediatamente quando pensa a história.
Concluímos. Derrida relembrou o percurso seguido por Heidegger no tema do espírito, percurso que restitui, mais amplamente, no «triângulo» pelo qual Heidegger pensa em toda a historialidade em geral. Mostrou que esse percurso (e, desta forma, esse próprio triângulo) incluía um «evitar» — termo justificado pelo facto que aquilo que até aqui nunca tinha sido nomeado (a dimensão hebraica) [226] está porém «incorporado» [7] naquilo que Heidegger reconhece como história (as determinações greco-latinas), tal como naquilo que exuma como determinação originária (a essência que resta por pensar). Assim Derrida pode no fim do seu livro, alargar o debate e, na prosopopeia dos teólogos [8], evocar toda a extensão daquilo, de hebraico-cristão, que se reencontra em Heidegger. Não podemos aqui voltar a pegar em toda esta prosopopeia. Basta estabelecer o quadro recapitulativo dos diferentes temas que o teólogo levanta no texto heideggeriano, e que utiliza para perguntar «sabe a que ponto está perto de nós?» [9]: a promessa, a mais matinal alvorada e o fim da história, a queda e a maldição, o mal espiritual, a palavra de Deus («o seu Sprechen (...) concedido a um Zusprechen ou a um Zuspruch — mandamento, consolo, exortação —, que nos apela para o Entsprechung, para a correspondência» [10]), a ressurreição a vir desde a alvorada, a salvação e o golpe que a salva, a louvor. E os teólogos (ou pelo menos um de entre eles, aparentemente aberto ao ecumenismo) continuam: «Sobretudo, quando falam de Deus, de retirada, da chama e de escrita de fogo na promessa, de acordo com a promessa do regresso para o pais da pré-arqui-originalidade, não é certo que receba uma resposta análoga e um eco similar ao do meu amigo e correlegionário, o Judeu messiânico [11].»
Derrida sublinha de facto o apagar e a retoma; acentua nas duas dimensões que o presente trabalho se esforçou por pensar, nos nomes de encarregar e de denegação. Até este ponto, aceito de bom grado que actualiza, no tema do espírito, uma estrutura que eu me tinha dedicado a soltar a partir de outros temas, e que supunha que poderia ter sido reencontrada — se pelo menos fosse procurada — em todas as questões abordadas por Heidegger. Mas uma vez reconhecida esta estrutura, Derrida é levado, nas últimas páginas do seu livro — é a resposta de Heidegger aos teólogos, ou seja a segunda prosopopeia — a uma conclusão que não poderia partilhar.
Ver online : Marlène Zarader
ZARADER, Marlène. A Dívida Impensada. Heidegger e a Herança Hebraica. Lisboa: Instituto Piaget, 2000
[1] J. Derrida, De l’Esprit, op. cit., p. 164.
[2] Ibid., p. 165.
[3] Ibid., p. 165.
[4] Ibid.
[5] Ibid., p. 164.
[6] Ibid.
[7] Ibid., p. 167.
[8] Ibid., pp. 179-181.
[9] Ibid., p. 180.
[10] Ibid.
[11] Ibid., p. 181.