Filosofia – Pensadores e Obras

pré-socrático

Sem desconhecer a importância excepcional de Sócrates e de Platão na afirmação das exigências de clareza e de livre crítica que marcam especificamente o ideal da Filosofia, evitemos tratar os primeiros pensadores da Grécia como “precursores” (o que implica sempre, mais ou menos confusamente, o termo de “pré-socráticos”). Não que sua originalidade seja incomensurável aos mais vivos problemas do nosso tempo e se encontre bloqueada numa espécie de gueto ideológico limitado, de um lado, pelos mitos e, do outro, pelo socratismo e a Filosofia: muito pelo contrário. Mas, precisamente, os “precursores” são apenas, afinal, objetos artificiais obtidos por uma leitura ao revés da história. é perfeitamente legítimo e indispensável colocar esses velhos mestres numa perspectiva histórica. Abstenhamo-nos, contudo, de absorvê-los no futuro que abriram.

Eles são — pelo menos os maiores — iniciadores: no começo histórico da livre reflexão, conservam por isso mesmo um privilégio que poderia ser o de um frescor originário onde seria de boa inspiração ir frequentemente retemperar e renovar o mais resoluto modernismo. Infelizmente, é bem verdade que uma tal volta às fontes não é fácil nem plenamente possível sob nenhum ponto de vista: eis dois milênios e meio que as palavras se evolaram e, dos textos, só herdamos fragmentos frequentemente muito curtos, excertos ou citações raramente utilizados com fins documentários e sempre suspeitos de negligência, de fantasia ou de acidentes de transmissão em autores, filósofos, compiladores, escoliastas, apologistas mais ou menos tardios dos quais nunca se pode esperar as precauções e os escrúpulos da historiografia filosófica e filológica. Esta, que se afirmou no século XIX, teve e continua a ter todo o cuidado em estabelecer os textos em seus limites e conteúdos exatos (notadamente, distinguindo as citações dos testemunhos não-literais), em restituir da melhor maneira seu sentido, em adivinhar suas intenções. Nem por isso os mais autorizados intérpretes deixam de estar frequentemente divididos.

Quer isto dizer que todo esforço de síntese é prematuro e talvez definitivamente desarrazoado? Isto seria fora de dúvida se o projeto de uma tal síntese tivesse uma ambição dogmática qualquer. Pois não se trata de conseguir chegar a uma verdade definitiva, mas de inscrever o que parece o mais provável numa concepção geral que os textos autorizam e nos sugerem, sem pretender impô-lo a todos os espíritos. Essa concepção reduz-se a caracterizar o período em causa pelo surgimento de uma livre curiosidade hostil às imagens sagradas do antropomorfismo mítico e desejosa de aliar a solidez das observações à clareza das teorias, não sem que — segunda característica importante — as velhas tradições e inspirações religiosas e míticas se mantenham ou reapareçam, ora mais, ora menos, na forma dessa atitude nova. Assim acha-se inaugurado um debate complexo (feito de oposições, mas também de influências e transposições diversas), do qual, não importa o que se diga, a mais moderna Filosofia, em suas mais fundamentais intenções, nos parece bem longe de poder se privar. Desde suas origens, a livre reflexão se envolve em conflitos de desdobramentos ilimitados; nisso reside, no nosso modo de ver, o interesse dos “pré-socráticos”. [J. Bernhardt