Filosofia – Pensadores e Obras

Renascença

A Renascença marca uma renovação e uma ruptura; é costume congratular-se por ambos estes fatos, mas o juízo merecia ser mais ponderado. Nesse repúdio do passado havia em primeiro lugar ingratidão e muitas contribuições, muitos valores ainda vivos, muitos germes que apenas esperavam ocasião propícia para se desenvolver eram tratados com descaso; por outro lado, os caminhos novos que se começava a trilhar estavam longe de oferecer segurança e os homens não se apercebiam de que, procurando retificar a direção, falseavam-na em outro sentido.

Não devemos imaginar, aliás, que essa renovação tenha sido integral e súbita; a história não tem desses saltos. Muitos dados anteriores continuaram a ser utilizados e não assumiram imediatamente uma fisionomia diversa; não era a primeira nem a segunda vez que se verificava um retorno ao passado; aprendera-se a estimar a antiguidade e travara-se conhecimento com ela, um conhecimento bastante profundo, se bem que ela fosse por vezes desfigurada. Não é da noite para o dia que nos tornamos humanistas e houve um humanismo antes do Humanismo; quer o termo da evolução fosse o racionalismo, quer o ateísmo, as correntes naturalista e religiosa, anticlerical e cristã, que se escoavam, confundidas, durante a Idade Média, levaram mais tempo do que geralmente se supõe para separarem-se.

Também é verdade que outros dias despontavam, com seus caracteres próprios. Distinguiam-se por uma maneira de pensar bastante singular. Esse pensamento não só deixara de ser condicionado pela , mas abeberava-se em fontes que já não eram exclusivamente filosóficas. Eram o fruto de uma vasta cultura histórica ou filológica e do estado social da época. Assumia um caráter literário ou mesmo artístico e sofria a influência dos costumes como das condições políticas; multiplicava-se em figuras diversas e pitorescas, mas não surge aí nenhum desses vastos painéis em que uma doutrina se organiza e se impõe durante um momento.

É digno de nota, com efeito, que a filosofia da Renascença não comporte grandes sistemas como os que vimos desenvolver-se na filosofia antiga ou na medieval. Possui grandes pensadores, mormente pensadores curiosos, que mais valem por si mesmos, pelo seu temperamento, pelo seu gênio, do que pelas suas ideias; estas ideias, eles procuram utilizá-las em suas pesquisas, em seus conflitos, em sua arte e mesmo em suas técnicas de preferência a reuni-las num corpo de doutrina. Temos aí, portanto, um estado de espírito, um clima filosófico, mas não uma filosofia ou filosofias propriamente ditas. Trata-se menos de especular que de viver e de uma certa maneira de encarar a vida.

Se quisermos agora distinguir alguns traços gerais dessa atitude do homem em face das coisas e em face de si mesmo, atitude realmente nova, notaremos em primeiro lugar um gosto, uma paixão, um entusiasmo por essa vida e por exercícios do espírito que o período anterior evidentemente não conhecera. E não podemos deixar de assinalar um recuo do cristianismo, pelo menos do cristianismo ascético e místico, isto é, do puro e verdadeiro cristianismo. Não é mais a que busca a inteligência, mas a inteligência que procura explicar a e, não o conseguindo, consola-se depressa, antes de dispensá-la por completo, com o seu próprio jogo e com o deslumbramento de bens que já não são os do céu.

É certo que o livre curso aberto ao animal humano pela anarquia política, o descobrimento de uma antiguidade revelada, agora, no seu conjunto e na perfeição da sua arte escultória como da sua literatura, um mundo dilatado por viagens que pareciam antes insensatas, descobertas que abriam perspectivas fascinantes sobre a economia da natureza, foram causas dessa mutação do espírito, se bem convenha colocar no próprio espírito, na sua natureza e no seu mistério, o princípio das suas viravoltas e desvios. As consequências, todavia, foram decisivas e de um alcance muito maior do que se teria imaginado.

O mais grave era a autonomia proclamada pela inteligência e que a constituía juiz de tudo e de si mesma. Seus êxitos convidavam-na a todas as audácias. Através dos segredos da natureza esperava desvendar os do próprio Deus e não previa que, ao desmontar a derradeira mola da mecânica montada pelo Criador, aprenderia a passar sem ele e que, ofuscada pelas próprias luzes, ofuscada pela razão, pretenderia submeter a mesma ao seu império, antes de dispensá-la por completo. Assim se preparava o mundo moderno que, no termo e no excesso a que chegou, representa o grande divórcio entre o homem e Deus.

0 homem não tolerava mais limitação ou constrangimento de ordem terrestre ou celeste, material ou espiritual. Fazia questão de não reconhecer mais autoridade alguma, quer no temporal, quer no espiritual, e de não se impor nenhuma disciplina que o tolhesse da gozar os seus prazeres ou lhes impedisse a livre expansão. O estado tornou-se uma tirania pessoal ou uma tirania das facções e assumiu um caráter puramente laico; a autoridade, fosse qual fosse, podia ser objeto de discussão. A filosofia tendia a converter-se numa explicação puramente racional do mundo e a moral a consistir apenas em impulsos e numa legislação, sem qualquer ligação com o outro mundo e sem nenhuma sanção de cima. Era, numa palavra, o reino do homem-rei, na expectativa de tornar-se o reino do homem-deus. Notemos, no entanto, que estas coisas não eram ditas com tanta força de expressão nem tão abertamente. Não havia absolutamente — repetimo-lo — pensador capaz de realizar uma síntese de conjunto, pouco possível aliás em meio a tamanha variedade de temperamentos e diversidades de doutrinas: havia sobrevivencias de uma época recente e as potências assim solapadas eram ainda capazes de se defender com represálias temíveis. Nada parecia muito mudado, nem o pensamento que se manifestava em público pretendia explicitamente transformar tudo. Os senhores do momento eram desconfiados, sabiam farejar o perigo e debelá-lo sem considerações. Era no silêncio dos gabinetes que os homens se abandonavam a uma reprovável embriaguez; não se confiavam senão a ouvidos complacentes e cúmplices; a essa aurora renascente misturava-se, sinistro, o ciarão das fogueiras. Mas o mundo estava em marcha, fosse ela qual fosse e, se não conduzia ao ponto visado, o pensamento empenhava-se num jogo em que esperava tudo ganhar, sem suspeitar que podia também perder tudo.

(…)

Já dissemos que o racionalismo, isto é, o sistema que consiste em limitar estritamente o homem ao âmbito da própria razão, da razão racionante, era o termo natural do movimento renascentista. Não se creia, contudo, que esse racionalismo fosse o que hoje vemos; tal era a útil advertência que fazia Lucien Febvre no seu livro sobre a Religião de Rabelais, onde, embora se enganasse talvez sobre o fundo e na interpretação, definia com bastante exatidão o estado provável dos espíritos. A Renascença separa ou tende a separar a razão e a , mas ainda conserva a ambas, com maior ou menor sinceridade. Deixa todavia entrever e — com certos espíritos mais consequentes ou mais avançados — já mostra mesmo como a razão aprenderá a dispensar a e a passar da separação à negação.

Já não são filósofos de profissão que encontramos agora, mas literatos — e que literatos! — moralistas, e os primeiros nomes que surgem naturalmente são os de Rabelais e Montaigne. Talvez esperem que vejamos neles, como muitos têm pretendido ver, racionalistas puros, cépticos e inimigos da religião que fingiam professar. Não nos limitaremos a essa visão simplista e, em parte, ilusória. São lídimos representantes da Renascença e conservam também este traço característico de seu tempo: a coexistência, na falta da aliança, da razão e da . Tem-se falado, como dissemos, numa “religião” de Rabelais e revocado em dúvida o “cristianismo” de Montaigne. E se não possuímos do primeiro uma profissão de explícita, ouvimo-lo contudo falar num Deus onipotente e boníssimo, em termos de um vigor e de uma solenidade grandiosos; e se o outro, na Apologia de Raimundo de Sebonde, desbarata essa razão em que o seu autor pretendia apoiar-se, é para deixar à , exclusivamente, as coisas da ; tem além disso, aqui e acolá, sobretudo no capítulo “Das orações”, passagens que chegam quase a raiar pelo misticismo.

Mas é verdade que com estes dois grandes escritores se afiava uma espada de dois gumes que devia tornar-se terrivelmente perigosa. A crítica acerba e chocarreira com que Rabelais fustigava os costumes eclesiásticos e a maneira de pensar dos escolásticos infligia golpes sensíveis à própria igreja ou à sua filosofia, e era muito fácil levar o cepticismo universal de Montaigne até o terreno em que êk se abstivera de entrar. O que não deixou aliás de ser feito.

Charron, pode-se dizer, não é mais que um Montaigne descolorido, descarnado, e onde, por conseguinte, aparece melhor o jogo, o esqueleto racionalista. Mas a herança do mestre foi recolhida sobretudo por um bando mais audaz que ele teria desaprovado, o dos “libertinos”, que, pelo fim do século e no século seguinte, por sua conta e risco — o qual às vezes era grande, pois estava em jogo a própria vida — limitavam a terra à terra, o espírito ao malabarismo do espírito, e não temiam concluir por um ateísmo integral.

Numa tese preciosa sobre a Libertinagem erudita na primeira metade do século XVII, René Pintard traçou a história desses homens de uma audácia a toda prova. É justamente nesses anos tardios que se inicia o seu pleno desenvolvimento. Não houve, com efeito, verdadeiros racionalistas no começo do século precedente. Como adverte outro historiador do racionalismo, Henri Busson, nem Le Febvre de Étaples, nem Budé, nem Erasmo o foram: “embora queiram reduzir a teologia, embora a antiguidade os encante, nunca lhes acudiu à ideia construir um sistema de metafísica ou de moral fora da religião”28. E, na verdade, é precisamente o fideísmo que engendra esse movimento da inteligência, a separação da razão e da , para evitar o conflito entre ambas. Mas ninguém pensa ainda em se desvencilhar da .

Os “libertinos” de René Pintard vão mais depressa e mais longe. São espírito de vária espécie, ora pessoas de bem, ora menos honestas, que harmonizam demasiadamente bem os seus atos com os seus princípios; são “curiosos” cuja curiosidade nada deixa escapar. Vivem solitários no recesso dos seus gabinetes, onde se procuram e se reúnem em sociedades mais ou menos secretas. Encontramo-las em Paris e em Roma. Há o “gabinete Dupuy” — Pedro e Jaques Dupuy — ou “academia puteana”, na Rua dos Poitevins, perto de Saint-André-des-Arts, mais tarde Rua de la Harpe, e há os amigos de Horatius Tubero, pseudônimo sob o qual se abriga a famosa “tétrada” composta de Naudé, Elias Deodati, Gassendi e La Mothe-le-Vayer. Tornaremos ainda a encontrar Gassendi. Pelo exemplo que apresenta, e para vermos delinear-se um futuro temeroso, de-tenhamo-nos um instante no último.

Francisco La Mothe-le-Vayer, parisiense, viveu de 1588 a 1672, aliás com muita distinção pois foi preceptor de Luís XIV e de seu irmão, o Duque de Orleans. Era, por natureza e por hábito, epicurista. “Os deuses”, dizia ele, “me deram o ser, mas a filosofia me proporcionou o bem-estar.” E sua divisa era esta máxima espanhola: De las cosas más seguras, la más segura es dudar. Era um programa completo, e não o eram menos os títulos de algumas de suas numerosas obras: Trinta e um problemas cépticos, Da pouca certeza que existe em história, e por fim os Cinco diálogos jeitos à imitação dos antigos, por Horatius Tubero, que se tornaram o livro de cabeceira dos seus amigos. Compôs também um Hexameron rústico que pode ainda divertir muito, mas pouco honestamente.

Não deixava de se julgar e de se proclamar perfeitamente ortodoxo e jactava-se de inventar uma “céptica cristã” em que pretendia condenar “o saber presunçoso dos dogmáticos e todas essas ciências vãs cujo Apóstolo nos metia tanto medo”. Era realmente um discípulo de Montaigne, sem a graça e a profundeza do mestre e sem nada que o pudesse deter ou desviar no declive a que o arrastava o método.

O termo já se deixava descortinar. Manifestava-se nesses beaux esprits cuja “doutrina curiosa” o Pe. Garasse atacou, como também na lamentável aventura do infeliz Teófilo. O termo era Pierre Bayle e Voltaire, o maior dos “libertinos”. Mas, por um caminho mais largo, a Renascença ia também desembocar na filosofia moderna. [Truc]