Filosofia – Pensadores e Obras

fundamentação das ciências do espírito

Como se vê, à medida que avança, o pensamento de Dilthey amplia os seus horizontes e os problemas se multiplicam, ligando-se uns aos outros. Entretanto, o núcleo para o qual todos esses problemas convergem e do qual partem é sempre o da fundamentação das ciências do espírito. Pergunta-se Dilthey nos Estudos para a fundamentação das ciências do espírito (1905): “Como é que as ciências do espírito podem ser delimitadas pelas ciências da natureza?” Onde estão a essência da história e a sua diferença em relação às outras disciplinas? Pode-se alcançar um saber histórico objetivo?

Na obra citada e em outra, intitulada A construção do mundo histórico nas ciências do espírito (1910), ele apresenta em forma definitiva o seu projeto de fundamentação das ciências do espírito. Operando uma distinção entre Erlebnis e Erleben (o Erlebnis é uma etapa do Erleben, isto é, da vida), Dilthey sustenta que aquilo que é comum às ciências do espírito, ou seja, o que constitui o seu domínio, é “que todas elas estão baseadas no Erleben, nas expressões encontradas pelos Erlebnisse e no entender voltado para essas expressões”. Por outros termos, a corrente da vida se realiza em complexo de objetivações cujo significado deve ser entendido graças ao esforço de compreensão. “Os estados de consciência se expressam continuamente em sons, em gestos de vulto, em palavras e têm sua objetividade em instituições, estados, igrejas e institutos científicos — e precisamente nessas conexões é que se move a história”.

E o nexo entre Erleben, expressão e entender que institui a peculiaridade do mundo humano e fundamenta a autonomia das ciências do espírito. Esse nexo não pode ser encontrado na natureza nem nas ciências naturais. A vida, o Erleben, torna-se espírito objetivo, isto é, se objetiva em instituições (Estados, igrejas, sistemas jurídicos, movimentos religiosos, filosóficos, literários e artísticos, sistemas éticos etc). E o entender, na referência retrospectiva, dá origem às ciências do espírito: “tais disciplinas são a história, a economia política, as ciências do direito e do Estado, a ciência da religião, o estudo da literatura e da poesia, da arte figurativa e da música, das intuições do mundo e dos sistemas filosóficos e, por fim, a psicologia. Todas essas ciências se referem ao mesmo grande fato: o gênero humano”, isto é, “a realidade histórico-social do homem”.

Uma realidade que tem um lado externo investigável pelas ciências naturais, claro, mas cujo lado interno — o significado ou essência — só pode ser alcançado pelas ciências do espírito. E pode ser alcançado porque, através do entender — que é “um encontro do eu no tu” —, o homem pode compreender as obras e as instituições dos homens. “Aqui, o sujeito do saber é idêntico ao seu objeto”, pois “aqui a vida capta a vida”. Em suma, o entender é possível porque “a alma anda pelos caminhos habituais, nos quais já gozou e sofreu, sofreu e agiu em situações de vida semelhantes. Há infinitas estradas no passado e nos sonhos do futuro”.

Através de uma “transferência interior” implica um “consentimento” (Mitfühlen) e uma “penetração simpatética”, o homem pode reviver várias outras existências: “Diante dos confins impostos pelas circunstâncias, abrem-se para ele outras belezas do mundo e outras regiões da vida (…). Em termos gerais, ligado às realidades da vida e por elas determinado, o homem vem a se libertar não somente mediante a arte — o que tem ocorrido com maior frequência —, mas também através da compreensão daquilo que é histórico”. Abre-se a cortina do palco, aparece Ricardo “e, seguindo as suas palavras, os seus gestos e os seus movimentos, o espírito penetrante pode reviver algo que está fora de toda possibilidade de sua vida real”.

Esse reviver nos torna possível a aquisição das coisas espirituais. Assim, por exemplo, escreve Dilthey, “quando percorro as cartas e os escritos de Lutero, os relatos de seus contemporâneos, os anais das conferências religiosas e dos concílios, bem como suas atas oficiais, vivo um processo religioso de tal força de erupção e de tal energia que, na vida e na morte, ele está além de toda possibilidade de Erlebnis para cada homem dos nossos dias. Eu, porém, posso revivê-lo”. Mais: “Vejo nos claustros uma técnica de contato com o mundo invisível que dá às almas dos monges constante orientação em direção às coisas transcendentes: aqui, as controvérsias teológicas tornam-se questões de existência interior. Vejo como é que, no mundo laico, se prepara em numerosos canais — púlpitos, confessionários, cátedras, escritos — o que é elaborado nos claustros. E, assim, esse processo nos revela um mundo religioso que está presente nele (em Lutero) e nos seus companheiros dos primeiros tempos da Reforma, ampliando o nosso horizonte através de possibilidades de vida que só desse modo se tornam acessíveis para nós”. [Reale]