VIDE Lebenswelt
(al. Lebenswelt). Termo introduzido por Husserl em Krisis, para designar “o mundo em que vivemos intuitivamente, com suas realidades, do modo como se dão, primeiramente na experiência simples e depois também nos modos em que sua validade se torna oscilante (oscilante entre ser e aparência, etc.)” (Krisis, § 44). Husserl contrapõe esse mundo ao mundo da ciência, considerado como um “hábito simbólico” que “representa” o mundo da vida, mas encontra lugar nele, que é “um mundo para todos” (Ibid., Beilage, XIX). [Abbagnano]
É na elaboração da grande questão suscitada desde as Recherches logiques, a de saber o que se entende por verdade, que se desenvolve principalmente a filosofia da Lebenswelt. É claro que a verdade não pode ser definida aqui pela adequação do pensamento a seu objeto, pois tal definição implicaria na afirmação de que o filósofo que define contempla primeiro todo o pensamento e, segundo, todo objeto na sua relação de exterioridade total: a fenomenologia nos ensinou que tal exterioridade é impensável. A verdade não pode também se definir somente como um conjunto de condições a priori, pois esse conjunto (ou sujeito transcendental à maneira kantiana) não pode dizer Eu, ele não é radical, ele é apenas um momento da subjetividade. A verdade só pode ser definida como experiência vivida da verdade: é a evidência. Mas essa vivência não é um sentimento, pois é claro que o sentimento não garante nada contra o erro; a evidência é o modo originário da intencionalidade, isto é, o momento da consciência em que a própria coisa de que se fala dá-se em carne e osso, em pessoa, à consciência, em que a intuição “se preenche”. Para poder responder a pergunta “é a parede amarela?” ou eu entro no quarto e olho para ela (é, no nível perceptivo, uma evidência originária a que Husserl denomina frequentemente “experiência”) ou então eu tento lembrar-me dela, ou então eu interrogo outrem a esse respeito; nos dois últimos casos, experimento se existe em mim ou em outrem uma “experiência”, ainda presente, da cor da parede. Toda justificação possível do juízo deverá passar por essa “experiência presente” da própria coisa; assim a evidência é o sentido de toda justificação ou de toda racionalização. É evidente que a experiência não se refere apenas ao objeto perceptivo, ela pode aplicar-se a um valor (beleza), em resumo, a qualquer dos modos intencionais enumerados acima. Entretanto, essa evidência ou vivência da verdade não apresenta total garantia contra o erro: sem dúvida há casos em que não temos a “experiência” daquilo de que falamos e, no entanto, experimentamo-lo em nós mesmos com evidência; mas, pode o erro inserir-se na própria evidência. Essa parede amarela, à luz do dia, me é revelada como cinza. Há então duas evidências sucessivas e contraditórias. A primeira que contém um erro. A isto Husserl responde na Lógica Formal e Transcendental, § 8: “Mesmo uma evidência que se apresenta como apodítica pode revelar-se como ilusória, o que pressupõe, não obstante uma evidência do mesmo gênero, na qual ela “eclode”. Em outros termos, é sempre e exclusivamente na experiência atual que a experiência anterior me aparece como ilusória. Assim não existe uma “experiência verdadeira” em cuja direção dever-se-ia voltar como se fosse o indicador da verdade e do erro; a verdade se experimenta sempre e exclusivamente numa experiência atual, o sempre e exclusivamente numa experiência atual, o fluxo das vivências não se remonta, pode-se apenas dizer que se tal vivência se dá atualmente a mim como uma evidência passada e errônea essa atualidade constitui ela mesma uma nova “experiência” que exprime no presente vivo, ao mesmo tempo o erro passado e a verdade presente como a correção desse erro. Não há, portanto, verdade absoluta, postulado comum do dogmatismo e ao ceticismo, a verdade se define como revisão, correção e superação dela mesma, fazendo-se essa operação dialética sempre no seio do presente vivo (lebendige Gegenwart); assim, ao contrário do que se produz numa tese dogmática, o erro é compreensível, porque está implícito no próprio sentido da evidência pela qual a consciência constitui o verdadeiro. É, pois, necessário, para responder corretamente ao problema da verdade, isto é, para descrever corretamente a experiência do verdadeiro, insistir com ênfase sobre o devir genético do ego: a verdade não é um objeto, é um movimento e ela não existe a não ser que esse movimento seja efetivamente feito por mim.
Por conseguinte, para verificar um juízo, isto é, para extrair-lhe o sentido de verdade, é preciso proceder a uma análise regressiva que leve a uma “experiência” pré-categorial (ante-predicativa), a qual constitui um pressuposto fundamental da lógica em geral (Aron Gurwitsch). Esse pressuposto não é um axioma lógico. Ele é condição filosófica de possibilidade, constitui o solo (Boden) no qual toda predicação tem raiz. Antes de toda ciência, aquilo que se examina nos é dado previamente numa “crença” passiva, e o “pré-dado universal passivo de toda atividade julgadora” é denominado “mundo”, “substrato absoluto, independente, no sentido profundo de independência absoluta” (Experiência e Juízo, 26 et 157). O fundamento radical de verdade se revela ao final de um retorno pela análise intencional à Lebenswelt, no seio da qual o sujeito constituinte “recebe as coisas” como sínteses passivas anteriores a todo saber rigoroso. “Essa receptividade deve ser vista como etapa inferior da atividade ” (ibid., 83), o que significa que o ego transcendental que constitui o sentido desses objetos se refere implicitamente a uma apreensão passiva do objete, a uma cumplicidade primordial que ele tem com o objeto. Essa alusão demasiado breve permite-nos precisar, finalizando, que o “mundo” de que se trata aqui não é evidentemente o mundo da ciência natural, ele é o conjunto ou ideia no sentido kantiano de tudo aquilo que existe e de que se pode ter consciência.
Assim, após a redução, que afastara o mundo sob sua forma constituída, para restituir ao ego constituinte sua autenticidade de doador de sentido, o desígnio husserliano ao explorar o próprio sentido dessa Sinngebung subjetiva reencontra o mundo como a própria realidade do constituinte. Não se trata, evidentemente, do mesmo mundo: o mundo natural é um mundo fetichizado no qual o homem se abandona como existente natural e onde ele “objetiva” ingenuamente a significação dos objetos. A redução procura apagar essa alienação e o mundo primordial que descobre ao prolongar-se é o solo de experiências vividas sobre o qual se eleva a verdade do conhecimento teórico. A verdade da ciência não é mais fundada em Deus como em Descartes nem nas condições a priori de possibilidade como em Kant, ela se funda sobre a vivência imediata de uma evidência pela qual o homem e o mundo se revelam concordes originariamente. [Lyotard]