Filosofia – Pensadores e Obras

sonho

(gr. enyption; lat. somnium; in. Dream; fr. Rêve; al. Traum; it. Sogno).

Ação da imaginação durante o sono. Esta é a definição já proposta por Platão (Tim., 45 e) e Aristóteles (De Somniis, 1, 459 a 15), sendo também adotada pela psicologia moderna; nesta, dá origem a uma série de problemas que escapam completamente à alçada da filosofia (cf. a propósito desses problemas E. Servadio, II sogno, 1955). Freud e os psicanalistas interpretaram o sonho de modo funcionalista, ao tentarem determinar sua função na vida do homem. Segundo Freud, o sonho “é um meio de suprimir as excitações (psíquicas) que perturbem o sono, supressão essa realizada através de satisfações alucinatórias” (Intr. à la psychanalyse, 1932, p. 151). O que encontra realização simbólica no sonho na maioria das vezes são desejos proibidos, inibidos pela censura, que, portanto, sofrem uma elaboração radical, cabendo ao psicólogo interpretá-la. (Ibid., pp. 189, 234). Essa teoria de Freud foi muito discutida, e não parece apta a explicar todas as espécies de sonho ou todos os seus aspectos; apesar disso, foi a única a propor o problema da funcionalidade do sonho, vale dizer, da função que ele exerce na economia da vida psíquica.

Os filósofos algumas vezes se dedicaram à análise do sonho para mostrar a incerteza da discriminação entre ele e a vigília, utilizando-o como elemento de dúvida teórica. Platão dizia: “Nada nos impede de crer que as conversas que agora mantemos sejam mantidas em sonho, e quando em sonho cremos contar um sonho, a semelhança das sensações no sonho e na vigília é realmente maravilhosa” (Teet, 158 c). Por outro lado, “o tempo durante o qual dormimos é igual ao tempo em que estamos acordados, e em ambos nossa alma afirma que só as opiniões que tem naquele momento são verdadeiras; desse modo, por igual espaço de tempo dizemos que são verdadeiras ora estas, ora aquelas, e defendemos umas e outras com a mesma energia” (Ibid., 158 d). Nos sécs. XVII e XVIII esse tema foi frequentemente repetido por poetas e filósofos. Shakespeare dizia: “Somos feitos da mesma substância que que são feitos os sonho, e nossa breve vida está fechada num sono” (Tempest, ato IV, cena I). Calderón de la Barca utilizou o mesmo tema em A vida é sonho (1635): “São as glórias tão semelhantes aos sonho que as verdadeiras passam por falsas, e as falsas por verdadeiras? É tão pouca a distância entre umas e outras que é preciso saber se o que se vê ou frui é sonho ou realidade?” (Ato III, cena X). Descartes empregava o mesmo tema como elemento de dúvida: “O que acontece em sonho não parece tão claro e distinto quanto o que acontece durante a vigília. Mas, pensando a respeito, lembro-me de ter sido muitas vezes enganado por simples ilusões, enquanto dormia. E, detendo-me nesse pensamento, vejo com clareza que não há indícios concludentes, nem sinais bastante seguros, que possibilitem distinguir com nitidez a vigília do sonho, a tal ponto que fico admirado, e minha admiração é tanta que quase me convence de que estou dormindo” (Méd., I; cf. Princ. phil, I, 4). A teoria de Leibniz, segundo a qual a vida da mônada (substância espiritual) é “um sonho bem regulado”, constitui outra manifestação do mesmo tema. Leibniz diz: “Metafisicamente falando, não é impossível que haja um sonho tão contínuo e duradouro quanto a idade de um homem. (…) Mas, desde que os fenômenos estejam interligados, não importa que sejam chamados de sonhos ou não, porque a experiência mostra que não nos enganamos ao aprendermos os fenômenos, quando eles são aprendidos segundo as verdades de razão” (Nouv. ess., IV, 2, 14). Voltaire dizia: “Se os órgãos, por si sós, produzem os sonho da noite, por que não poderiam produzir, por si sós, as ideias do dia? Se a alma, por si só, tranquila no descanso dos sentidos e agindo sozinha, é a causa única e o único sujeito de todas as ideias que temos dormindo, por que todas essas ideias são quase sempre irregulares, irracionais, incoerentes?” (Dictionnaire philosophique, 1764, art. Songes). Schopenhauer talvez seja o último a apresentar esse tema em sua forma clássica: “A vida e os sonho são páginas de um mesmo livro. A leitura contínua chama-se vida real. Mas quando o tempo habitual de leitura (o dia) chega ao fim e vem a hora de descansar, então às vezes continuamos, fracamente, sem ordem e conexão, a folhear aqui e acolá algumas páginas: às vezes é uma página já lida, muitas outras vezes uma outra ainda desconhecida, mas sempre do mesmo livro” (Die Welt, I, § 5). [Abbagnano]


A sequência de imagens psíquicas que se produzem no sono. — A característica fundamental do sonho é fazer-nos participar de uma ação; em outros termos, ser dramático. As associações formam-se nele de maneira absolutamente livre, independentemente do controle da consciência e da vontade. Pensou-se também que a lógica do sonho era uma expressão do inconsciente. A psicanálise, cujo objeto é a análise do inconsciente, dá grande importância à análise dos sonhos; distingue seu conteúdo manifesto (que nos parece frequentemente desprovido de sentido) e seu conteúdo latente (o sentido inconsciente). Desse ponto de vista, Freud distingue (em O sonho e sua interpretação) os sonhos de criança e os sonhos de adulto: os primeiros apenas exprimem os desejos da véspera (tal é o caso do menino Hermann, que, tendo sido privado de cerejas no jantar, desperta satisfeito, afirmando ter “comido todas as cerejas”. Sonhara que as comera, e esse sonho muito simples evoca diretamente um desejo consciente.). Em compensação, no sonho do adulto, o desejo é reprimido pela “cesura” da consciência social e se exprime sob uma forma disfarçada. Por exemplo, uma jovem sonha que seu sobrinho, de quem gosta muito na vida real, está morto; ora, experimenta com isso uma sensação de contentamento. A análise psicanalítica revela que, no passado, a jovem encontrara o homem que amava junto ao leito de seu primeiro sobrinho, que está morto; em consequência disso, espera revelo por ocasião da morte de seu segundo sobrinho: daí advindo a sensação de contentamento. A especificidade do sonho do adulto manifesta-se aqui no fato de que a sensação (de contentamento) não se liga ao conteúdo manifesto do sonho (a morte do sobrinho), e sim a seu conteúdo latente, reprimido no inconsciente. O “disfarce” é uma característica específica do sonho do adulto. A tarefa da análise psicológica é permitir-nos fazer coincidir os dados de nossa consciência com nossas aspirações inconscientes e realizar assim o equilíbrio de nossa personalidade. [Larousse]


Quando o fogo exterior se retira pela noite, o fogo interior se encontra separado dele; então, se sai dos olhos, cai sobre um elemento diferente, se modifica e extingue, uma vez que deixa de ter uma natureza comum com o ar que o rodeia, que já não tem fogo. Deixa de ver, e conduz ao sono. Esses aparatos protetores da visão dispostos pelos deuses, as pálpebras, quando se fecham freiam a força do fogo interior. Este, por sua vez, acalma e aquieta os movimentos internos. E assim que estes se tenham apaziguado, sobrevêm o sonho; e se o repouso é completo, um sono quase sem sonhos se abate sobre nós. Por outro lado, quando subsistem em nós movimentos mais acentuados, de acordo com sua natureza e segundo o lugar em que se encontrem, dele resultam imagens de diversos tipos, mais ou menos intensas, semelhantes a objetos interiores ou exteriores, e das quais conservamos alguma lembrança ao despertar. [Platão, Timeu, XLV]


Se imaginarmos o sonhador quando ele, em meio à ilusão do mundo onírico e sem perturbá-la, se põe a clamar: “Isto é um sonho, mas quero continuar sonhando!”, se daí tivermos de concluir que há um profundo prazer interior na contemplação do sonho, se, de outro lado, para podermos sonhar com esse prazer íntimo diante da visão, tivermos de esquecer inteiramente o dia e suas terríveis importunações, poderemos então interpretar todos esses fenômenos, sob a direção de Apolo oniromante, mais ou menos da seguinte maneira: Tão certamente quanto das duas metades da vida, a desperta e a sonhadora, a primeira se nos afigura incomparavelmente mais preferível, mais importante, mais digna de ser vivida, sim, a única vivida, do mesmo modo, por mais que pareça um paradoxo, eu gostaria de sustentar, em relação àquele fundo misterioso de nosso ser, do qual nós somos a aparência, precisamente a valoração oposta no tocante ao sonho. Com efeito, quanto mais percebo na natureza aqueles onipotentes impulsos artísticos e neles um poderoso anelo pela aparência [Schein], pela redenção através da aparência, tanto mais me sinto impelido à suposição metafísica de que o verdadeiramente-existente [Wahrhaft-Seiende] e Uno-primordial, enquanto o eterno-padecente e pleno de contradição necessita, para a sua constante redenção, também da visão extasiante, da aparência prazerosa — aparência esta que nós, inteiramente envolvidos nela e dela consistentes, somos obrigados a sentir como o verdadeiramente não existente [Nichtseiende], isto é, como um ininterrupto vir-a-ser no tempo, espaço e causalidade, em outros termos, como realidade empírica. Se portanto nos abstrairmos por um instante de nossa própria “realidade”, se concebermos a nossa existência empírica, do mesmo modo que a do mundo em geral, como uma representação do Uno-primordial gerada em cada momento, neste caso o sonho deve agora valer para nós como a aparência da aparência; por conseguinte, como uma satisfação mais elevada do apetite primevo pela aparência. [Nietzsche, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. Tr. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 (ebook)]