BERDIAEFF (Nicolas), filósofo russo (Kiev 1874 — Clamart 1948). Professor na faculdade de filologia de Moscou (1920), foi exilado pelo governo soviético e transferiu-se para Paris. Sua reflexão é uma crítica do racionalismo e uma meditação sobre a existência individual à luz da fé cristã. Autor da Filosofia da liberdade (1911), Sentido criador (1916), O homem e a máquina (1933), Da escravidão e da liberdade do homem (1947). [Larousse]
Já em livros como Uma nova Idade Média e Espírito e liberdade este escritor manifestara o desejo de conciliar o cristianismo com a ação e a meditação do nosso tempo. Em Destinação do homem — talvez fosse preferível dizer “destino” — tenta explicar pela doutrina cristã os paradoxos reais ou aparentes desta vida que se manifesta efetivamente, desde que deixamos de encará-la à luz da fé, como o paradoxo por excelência.
Afigurou-se a este autor que uma velha filosofia caducara e que uma outra havia ocupado o seu lugar. O espírito começou por isolar as ideias pela abstração e em seguida tomou essas ideias pelo real. Platão e Aristóteles partiram daí ou aí foram chegar; Santo Tomás, depois deles e conforme eles, erigiu uma “metafísica dogmática”. Os tempos de tal metafísica são passados; a crítica kantiana mostrou que esse jogo do espírito não passava de um jogo, que a verdade era apreendida não em pálidas figuras tiradas da dedução, mas pelos dados imediatos da intuição, e que ao antigo desdobramento do sujeito e do objeto era preciso substituir o contato direto com a unidade vital. De acordo com tais princípios é que procederam Bergson, Heidegger e essa fenomenologia que consiste, se assim se pode dizer, numa “psicologia do dinamismo” e numa tentativa de colocar alguma coisa na duração ou no “fluxo” bergsonianos.
Este método e estas conclusões contestáveis pelo menos permitiram a Berdiaeff mergulhar imediatamente no seio da sua “realidade” cristã. Na base de tantos “paradoxos”, e reduzindo-os à medida que os formula, ele coloca a liberdade, única força capaz de responder pelo fato ao determinismo fatal deduzido pela análise. Quando se diz que Deus criou o homem à sua imagem deve-se entender por esta expressão que, como criador livre, quis que o homem criasse também dentro das suas fraquíssimas capacidades. Deus tirou todas as coisas do nada e nisso consiste todo o valor da criação, pois qualquer condição que se lhe tivesse imposto, fosse embora a da matéria, teria comprometido essa liberdade suprema. O homem, por sua vez, criará e remodelará, mas conforme o bem e o mal.
O bem e o mal não são de modo algum partes constitutivas e decisivas do mundo. Não se defrontavam na espécie de indiferen-ciação moral do paraíso terrestre e o contraste entre ambos se dissolverá na suprema unidade do paraíso celeste. Encontram sua explicação no “mito da queda”. Deus, ao criar, não podia igualar a si mesmo a sua criação, e a liberdade que concedeu ao mundo-não conservava a infalível retidão da sua. Tornava-se possível,, destarte, uma ruptura de harmonia, uma espécie de desobediência, Ela se verificou e a continuação do mundo na duração ficou marcada por esse fato.
Existe portanto uma primeira moral decorrente desta oposição, uma moral social, para o uso diário, e que se aproxima da simples vigilância policial ao ponto de por vezes se confundir com ela, tendendo mais à salvaguarda ou à continuação da espécie do que à sua perfeição — algo de muito semelhante, enfim, a essa religião “estática” que Bergson contrapunha a uma religião ascendente e dinâmica. Atém-se ao seu ponto de vista jurídico e formula uma multidão de problemas, de antinomias e de paradoxos que não consegue resolver. É que a solução deve ser procurada em outra parte. O mal vem, em suma, de uma liberdade pervertida. Retifique-se essa liberdade e a natureza, tanto a natureza moral como a outra, será restabelecida na sua integridade primitiva. E não teríamos aí, com a necessidade da Redenção, a própria obra da Redenção? Haverá portanto uma outra moral, fundada nessa mesma Redenção e tendo por princípio não mais a liberdade, mas a “graça”, que não somente reintegrará todo mérito mas também renovará todos os valores.
A esta luz, que é a luz verdadeira, revela-se uma nova feição do mundo e da humanidade e o homem se vê diretamente ligado à sua origem, isto é, a Deus. Desta forma caem todas as ciências vãs, todos os vãos amores e as vãs morais para dar lugar ao único bem vivo e atuante. A conduta comum da vida cotidiana aparece tal qual é, um puro farisaísmo, e os valores meramente sociais como valores falsos. É em vão que, quando a sua hipocrisia ou a sua nocividade foram um pouco longe demais, se apela para a revolução a fim de restabelecer alguma ordem ou um certo sentimento de pudor. A revolução, embora utilizável, nunca é desejável e os seus princípios contradizem os da ética cristã. Baseia-se na violência, no ódio, na inveja; é toda terrena e não visa nenhuma finalidade espiritual. E se é a Providência que a envia, será então como um flagelo.
“O elemento revolucionário”, ajunta o filósofo, “rejeita o valor da pessoa, da liberdade e da criação.” Tal declaração é decisiva. O Estado, esse “monstro frio” de Nietzsche, tende a subordinar tudo a si e esquece que a salvação é particular, que o mundo foi feito para o homem e não o homem para o mundo. Intervém então uma terceira ética, a da Criação que torna a colocar o destino na perfeição individual e orienta o homem para essa vontade de Deus, para essa imitação de Deus que são ao mesmo tempo a sua origem e o seu fim.
Esse destino, todavia, não se realiza absolutamente na terra. É necessário, pois, encontrar para ele um lugar fora do espaço, um tempo fora do tempo; isto conduz a uma derradeira forma de moral, a saber, a moral dos fins últimos. A morte aparece, em seu horror, como uma necessidade ou uma esperança supremas e a vida não vale senão por ela. Mas que nos espera além da morte? Nem o Paraíso dos primeiros dias, esse Éden em que, na ausência de ciência, não nascera ainda a consciência, nem esse inferno jurídico em que cumpre ver uma pura criação do racionalismo social. Não pode existir um inferno real e sensível, diz Berdiaeff, e seria até uma monstruosidade se existisse: “o inferno corresponde ao estado que experimenta a alma quando incapaz de se exteriorizar; oferece um egocentrismo apodrecido ao extremo, uma péssima e sombria solidão, noutras palavras, uma absoluta impossibilidade de amar. O inferno cria e organiza a ruptura da alma com Deus, com o mundo divino e com os outros homens”.
Estas negações conduzem às últimas realidades positivas e as palavras essenciais são pronunciadas: amar, amar e criar livremente no seu amor. Por esse caminho tornaremos a entrar no nosso destino próprio, nos associaremos à vontade divina, aprenderemos a participar numa obra da qual somos fruto e nos descobriremos numa originalidade tornada realidade. “A última palavra”, decide Berdiaeff, “cabe à deificação”.
Reservemos a parte dos riscos que corre a ortodoxia, a ortodoxia romana, neste pensamento cristão. Berdiaeff retorna às mesmas ideias na Realidade do espírito, precisando-as e amplificando-as não sem incorrer ainda em certas temeridades. Insiste aqui sobre o caráter universal que deveria ter a fé, a vida pela fé, e a necessidade da salvação geral, sem a qual parece insinuar que não seria possível a salvação particular. Volta assim a essa concepção de uma “cristandade” cuja realização fora esboçada pela Idade Média. Tal é o ideal proclamado por Berdiaeff em face do ideal comunista, formando um contraste que nos coloca no coração do problema. [Truc]