Sem confundir-se nunca, a razão e a fé podem compenetrar-se e ajustar-se mutuamente. A filosofia e a teologia de Tomás de Aquino são exemplos admiráveis desta mútua compenetração e ajuda, que jamais degenera em confusão das duas ordens. A filosofia pode muito bem desempenhar sua função própria na teologia. As verdades da fé ser vem, de sua parte, para iluminar os caminhos do pensar filosófico Mas sempre a fé e a razão procedem segundo sua própria e peculiar modalidade.
Na teologia, a filosofia não se excederá tentando a demonstração das verdades reveladas, que ultrapassam todo o poder da razão humana. Isso seria contrário ao bom método e ademais constituiria uma imprudência notória, gravemente prejudicial para a própria fé. Mas a filosofia poderá e deverá “declarar” a fé, explicá-la, rodeá-la de comparações e preparações racionais. Elaborará os conceitos necessários que, a modo de instrumentos mentais, sirvam para captar e reter melhor no espírito as verdades da fé. Mais ainda: visto que entre a fé do teólogo e a razão do filósofo não pode haver discrepância, a filosofia deverá ter por axioma certo que toda suposta demonstração racional da falsidade de um artigo de fé há de ser necessariamente falsa e sofistica; e ao filósofo tocará demonstrá-lo, abrindo assim campo livre para a vigência indiscutível do dogma.
De sua parte a filosofia não pode senão lucrar no contacto e fraternidade com a teologia. Da teologia tirará a filosofia indicações preciosas para seu propósito. Por exemplo: de antemão saberá o filósofo crente que certas teses filosóficas têm que ser necessariamente falsas: todas aquelas teses que, de um modo ou de outro, resultem incompatíveis com os’ dogmas da fé. E esta iluminação orientadora da fé o guiará através dos problemas racionais e lhe indicará as questões em que o esforço do seu intelecto deva firmar-se com maior afinco.
Mas mesmo nos momentos de mais íntima colaboração e compenetração a razão e a fé conservam sempre seus caracteres próprios e diferenciais, mantendo intacta a mútua independência. O filósofo demonstra por razões evidentes. O teólogo, pelo contrário, apela sempre, como fonte indiscutível, à autoridade suprema da revelação di vina. E até tal ponto acentua Tomás de Aquino a distinção radical entre esses dois modos de conhecimento, entre o método racional da filosofia e o método de autoridade da teologia, que chega a declarar entre ambas as ciências, uma diferença de gênero. Sem reservas de nenhuma espécie, com plena consciência da profunda novidade que esta concepção implica, Tomás de Aquino proclama e realiza rigorosamente a distinção e, ao mesmo tempo, a unidade da razão e da fé. Sua filosofia é filosofia e nada mais que filosofia. Ou, como costuma dizer-se hoje, filosofia pura. Nada de piedosas fraudes. Nem o menor elemento de suas demonstrações racionais está torcido ou inibido ou exaltado pela preocupação de acomodá-lo. A filosofia de Tomás de Aquino pode apresentar-se na história do pensamento humano como modelo perfeito de objetividade racional.
Não há nela nem rastro dessas habilidades habituais nos virtuosos do pensamento, que sabem às vezes com singular mestria pôr o raciocínio ao serviço de uma causa alheia à pura verdade. Quase me atreveria a dizer que a filosofia de Tomás de Aquino não é, na sua intenção, filosofia cristã. É filosofia verdadeira e, por isso, resulta cristã. Porque todo o trabalho intelectual do Santo Doutor se funda precisamente na convicção de que o melhor serviço que a filosofia pode prestar à religião consiste em desenvolver-se como exclusiva e autêntica filosofia. A verdade pura do pensar puro não pode senão conduzir em linha reta à verdade santa da crença religiosa. Por isso no sistema de Tomás de Aquino fraternizam de maneira quase miraculosa a profundidade com a singeleza; e o acordo das verdades racionais com as verdades da fé se produz de modo tão natural e evidente que se diria o encaixe e união das duas metades do mesmo todo.
A unidade objetiva da verdade é a base sobre que se funda a harmonia entre a fé e a razão. A verdade racional e a verdade da fé não podem contradizer-se. O único contrário da verdade é a falsidade. Um só e mesmo Deus é o autor de nossa razão e o autor da revelação. Necessariamente, portanto, hão de coincidir a revelação e a razão que procedem da absoluta verdade de Deus. A fé sabe o que sabe por aceitação reverenciai da autoridade divina. A razão sabe o que sabe por própria atividade inteligente. Porém, ambos os saberes são verdades e não podem contradizer-se, porque os princípios do raciocínio foram postos em nós por Deus, que é o mesmo autor da revelação recebida pela fé. A verdade de uma afirmação consiste na concordância daquilo que se diz com aquilo que é, não no modo ou método pelo qual chegamos a tal afirmação. Uma ocorrência fortuita, um pensamento infundado, asseverações de um demente, podem ser verdadeiros se o pensado ou asseverado concorda com o ser do pensado ou asseverado, embora sua procedência resulte inexplicável ou incompreensível. É possível acertar por casualidade. Sem dúvida nas coisas humanas e mundanas a garantia do acerto ou da verdade deve ser exigida em forma de provas e demonstrações, que nos convençam de que o pensado ou o falado coincide com o objeto a que se refere. Mas se o objeto está fora do alcance de nossa faculdade de comprovar e demonstrar, e se, de outra parte, a afirmação vem acompanhada de evidentes sinais que a indicam como de procedência divina, então é possível e conveniente e necessário recebê-la por verdadeira, embora não possamos humana e racionalmente comprová-la e demonstrá-la. E em todo caso, podemos estar bem certos é que entre essas afirmações recebidas pela fé e as que a razão natural elabora, não pode haver contradição alguma. A realidade é uma. Deus é um. A verdade é uma. A concordância entre a fé e a razão se funda em último extremo sobre o postulado da unidade do ser e da verdade em Deus. [Morente]