É também o espírito do classicismo que inspira Tomás de Aquino em outro problema muito grave que a filosofia grega propôs e agitou, oferecendo ao pensamento humano os tipos de solução exemplares: o problema das relações entre as ideias e as coisas. Com efeito, o mundo se compõe de coisas, de objetos reais. Mas nós podemos até certo ponto conhecer estas coisas. Como? Pensando-as, pesquisando aquilo que são, determinando as essências delas, descobrindo as ideias delas. Depois de ter descoberto a ideia de uma coisa, de ter sua essência, de saber aquilo que essa coisa é, dizemos que conhecemos essa coisa. Mas levanta-se então ante o filósofo o gravíssimo problema seguinte: essas ideias das coisas onde estão? Não se diga que essas ideias estão em mim, porque é bem evidente que, antes de adquirir eu ou descobrir eu a ideia de tal ou qual coisa, essa coisa era já o que é; existia já sua essência ou ideia, embora eu não a conhecesse. Das ideias eu me aposso no ato de conhecer. Mas onde estão, se as considero independentemente do ato de conhecer?
Só duas soluções são possíveis a este problema. Uma: dizer que as ideias estão nas próprias coisas. Outra: que as ideias estão fora das coisas. Neste segundo caso as ideias podem situar-se: ou em nenhuma parte — e esta é a solução de Platão, que nega localização às ideias no espaço e no tempo e as faz eternas realidades transcendentes — ou em alguma mente que, não podendo ser humana, teria que ser necessariamente a-divina — e esta é a solução dada por Santo Agostinho, que, como é bem sabido, sofreu profundamente a influência da filosofia platônica. A solução que considera as ideias como residentes nas coisas mesmas, foi a que descobriu Aristóteles; segundo ele, nós conhecemos partindo da percepção sensível das coisas, sobre a qual realizamos um trabalho de abstração, prescindindo do estritamente individual em cada coisa, para chegar, por depurações e por destilações sucessivas, até o conjunto das notas ou caracteres essenciais, até a essência, até aquilo que a coisa é, até a ideia.
Entre as duas soluções, a aristotélica de uma parte e a platônico-agostiniana de outra, abre-se um verdadeiro abismo que parece impossível preencher. A contradição das duas soluções chegou na época de Tomás de Aquino a apresentar caracteres de extraordinária agudeza e mesmo violência. Na época de Tomás de Aquino discutiam e combatiam os aristotélicos contra os platônico-agostinianos. E Tomás de Aquino viu-se desde logo na necessidade de tomar em conta
o problema e escolher entre a solução aristotélica ou a solução platônico-agostiniana. Nesse transe, que fará o Santo Doutor? Em muitos casos, em quase todos os livros de história da filosofia, lê-se que Tomás de Aquino escolhe a solução aristotélica. Mas eu digo que isto é falso. Tomás de Aquino não escolhe a solução aristotélica. Então, a platônico-agostiniana? Tampouco escolhe a platônico-agostiniana. Neste ponto Tomás de Aquino se conduz também como autêntico pensador clássico e rejeita o dilema: ou Aristóteles ou Platão-Santo Agostinho. Converte simplesmente a conjunção ou em e; e escolhe Aristóteles e Santo Agostinho. Toma as duas soluções; não uma das duas; porque não crê que em definitivo duas soluções sejam incompatíveis uma com a outra, mas que ambas têm seu fundamento, sua realidade, e sua verdade. As ideias estão nas coisas como diz Aristóteles. Mas também estão na mente de Deus, como diz Santo Agostinho. Não está a ideia da estátua na mente do escultor e também na própria estátua? Ou por acaso a estátua é informe? Não; a estátua não é informe. Toda realidade, toda coisa real é uma matéria que possui certa forma. Aristóteles colocou a ideia da coisa, como forma da coisa. Mas essa ideia que é forma da coisa, não está também, prévia e exemplarmente, na mente de Deus? Aristóteles, para explicar em que sentido a realidade da coisa contém a ideia da coisa, descobriu esta teoria da matéria e da forma como constituintes de toda realidade substancial. Mas esta teoria aristotélica não é nem de longe incompatível com a de Santo Agostinho, que coloca as ideias na mente de Deus. Não se pode ser em filosofia exclusivista e parcial. Não é possível deixar de aceitar a alternativa. Nosso pensamento deve ser amplo, complexo, matizado, eclético; em suma, clássico; porque assim é a própria realidade eclética, matizada, complexa e vasta. O ser não é unívoco, nem equívoco; o ser é análogo, quer dizer, diverso e, todavia, uno. [Morente]