Filosofia – Pensadores e Obras

dialética platônica

A maiêutica socrática da interrogação, da pergunta e da resposta, é o que Platão, discípulo de Sócrates, aperfeiçoa. Platão aperfeiçoa a maiêutica de Sócrates e a transforma no que ele chama dialética.

A dialética platônica conserva os elementos fundamentais da maiêutica socrática. A dialética platônica conserva a ideia de que o método filosófico é uma contraposição., não de opiniões distintas, mas de uma opinião e a crítica da mesma. Conserva, pois, a ideia de que é preciso partir de uma hipótese primeira e depois ir melhorando-a à força das críticas que se lhe fizerem, e essas críticas onde melhor se fazem é no diálogo, no intercâmbio de afirmações e negações; e por isso a denomina de dialética.

Vamos ver quais são os princípios, as essências filosóficas, que estão na base deste procedimento dialético.

A dialética se decompõe, para Platão, em dois momentos. Um primeiro momento consiste na intuição da ideia; um segundo momento consiste no esforço crítico para esclarecer esta intuição da ideia. De modo que, primeiramente, quando nos situamos ante a necessidade de resolver um problema, quando sentimos essa admiração que Platão elogia tanto, essa admiração diante do mistério, quando estamos diante do mistério, diante da interrogação, diante do problema, a primeira coisa que o espírito faz é jogar-se como uma flecha, como uma intuição que dispara em direção à ideia da coisa, em direção à ideia do mistério que se tem diante. Mas essa primeira intuição da ideia é uma intuição grosseira, insuficiente. Mais que a própria intuição, é a designação do caminho por onde iremos em direção à conquista dessa ideia. E então constitui-se a dialética propriamente dita em seu segundo momento, que consiste em que os esforços sucessivos do espírito para intuir, para ver, para contemplar, ou, como se diz em grego, theorein (daí provém a palavra “teoria”) as ideias, vão-se depurando cada vez mais, aproximando-se cada vez mais da meta, até chegar a uma aproximação, a maior possível, nunca à coincidência absoluta com a ideia, porque esta é algo que se encontra num mundo do ser tão diferente do mundo de nossa realidade vivente que os esforços do homem para atingir esta realidade vivente, para chegar ao mundo dessas essências eternas, imóveis e puramente inteligíveis que são as ideias, nunca podem ser perfeitamente bem sucedidos.

Tudo isto expõe Platão de uma maneira viva, interessante, por meio dessas ficções do que tanto gosta. Ele gosta muito de expor seus pensamentos filosóficos sob a forma do que ele mesmo denomina “contos”, como os contos que os velhos contam às crianças; denomina-os com a palavra grega mito.

Pois Platão gosta muito dos mitos, e para expressar seu pensamento filosófico apela a eles muitas vezes. Assim, para expressar seu pensamento da intuição, da ideia e da dialética, que nos conduz a depurar essa intuição, emprega o mito da “reminiscência”. Narra o conto seguinte: As almas humanas, antes de viver neste mundo e de alojar-se cada uma delas num corpo de homem, viveram em outro mundo, viveram no mundo onde não há homens, nem coisas sólidas, nem cores, nem odores, nem nada que passe e mude, nem nada que flua no tempo e no espaço. Viveram num mundo de puras essências intelectuais, no mundo das ideias. Esse mundo está num lugar que Platão metaforicamente denomina lugar celeste, topos uranos. Lá vivem as almas em perpétua contemplação das belezas imperecíveis das ideias, conhecendo a verdade sem nenhum esforço porque a têm intuitivamente pela frente, sem nascer nem morrer, em absoluta eternidade.

Mas essas almas, de vez em quando, vêm à terra e se alojam num corpo humano dando-lhe vida. Estando na terra e alojando-se num corpo humano, naturalmente têm que submeter-se às condições em que se desenvolve a vida na terra, às condições da espacialidade, da temporalidade, do nascer e do morrer, da dor e do sofrimento, da insuficiência dos esforços, da brevidade da vida, das desilusões, da ignorância e do esquecimento. Estas almas esquecem, esquecem as ideias que conheceram quando viviam ou estavam no topos uranos, no lugar celeste onde moram as ideias. Esquecidas de suas ideias, estão e vivem no mundo. Mas como estiveram antes nesse topos uranos, onde estão as ideias, bastará algum esforço bem dirigido, bastarão algumas perguntas bem feitas para que, do fundo do esquecimento, por meio da reminiscência vislumbrem alguma vaga lembrança dessas ideias.

Logo que Platão narra este conto (porque é um conto, não vamos crer que Platão acredita em tudo isto) a uns amigos seus em Atenas, estes ficam um pouco receosos; pensam: Parece que este senhor está caçoando. Então Platão lhes diz: “Vou demonstrá-lo a vocês.” Nesse momento passa por lá um rapaz de quinze anos, escravo de um dos participantes da reunião. Platão lhe diz: “Mênon, seu escravo sabe matemática?” “Não, homem; que há de saber! É um criado, um escravo de minha casa.” “Pois, que venha aqui; você vai ver.”

Então Sócrates (que nos diálogos de Platão é sempre o porta-voz) começa a perguntar. Diz-lhe: “Vamos ver, rapaz: imagina três linhas retas”, e o rapaz as imagina. E assim, à força de perguntas bem feitas, vai tirando dele toda a geometria. E diz Sócrates: “Vêem? Não a sabia? Pois a sabe! está recordando-a dos tempos em que vivia no lugar celeste das ideias.”

As perguntas bem feitas, o esforço por dirigir a intuição para a essência do objeto proposto, pouco a pouco e não de chofre, com uma série de flechadas sucessivas, encaminhando o esforço do espírito para onde deve ir, conduzirão à reminiscência, à recordação daquelas ideias intelectuais que as almas conheceram e que logo, ao se encarnar em corpos humanos, esqueceram.

A dialética consiste, para Platão, numa contraposição de intuições sucessivas, cada uma das quais aspira a ser a intuição plena da ideia, do conceito, da essência; mas como não pode sê-lo, a intuição seguinte, contraposta à anterior, retifica e aperfeiçoa essa anterior. E assim sucessivamente, em diálogo ou contraposição de uma intuição à outra, chega-se a purificar, a depurar o mais possível esta vista intelectual, esta vista dos olhos do espírito, até aproximarse o mais possível dessas essências ideais que constituem a verdade absoluta. [Morente]