Ao ser, Descartes em sua linguagem, denomina substância, coisa. Aquilo que significa o substancialismo no cartesianismo do começo, não o das Regras, mas o da Segunda meditação, o que se iguala ao Começo e, nesse momento inaudito e único do pensamento ocidental, identifica-se [54] com o surgimento inaugural do aparecer, torna-se transparente. “Coisa”, na expressão “coisa que pensa”, não indica nada para além do aparecer na atualidade de sua efetuação, como se aparecer designasse uma simples aparência, um fenômeno – Shein, Ersheinung – deixando ainda atrás de si a realidade, revelando-a de modo mediato, quer dizer, ocultando-a, algo que, em seu mostrar-se, remete a alguma coisa de outro que, por sua vez, não se mostra, não se manifesta. “Coisa pensante” designa antes o que se mostra no mostrar-se, ao passo que o que se mostra não é alguma coisa, mas o próprio mostrar-se. A “alguma coisa da substância”, a “coisa”, é apenas a aparição do próprio aparecer e seu brilho.
Para saber o que é uma coisa, algo, o ser, Descartes não vê como necessária a consideração dos animais, das plantas, das ideias – dado que nada disso existe depois da dúvida. Para ele, é suficiente tomar nota da fulguração do aparecer e de sua Parusia [gr. παροὐσία, parousia, nova vinda ou visita]. Uma “coisa que pensa” nada mais é do que o resplendor do clarão, a luz que se ilumina, a substancialidade desta coisa é a efetividade fenomenológica, a materialidade da fenomenalidade como tal. É ainda novamente contra Gassendi, talvez também contra toda asserção da consciência natural, que Descartes direciona a sua a ironia exasperada: Admira-me também que sustentais que possa não estar no espírito a ideia do que, em geral, nomeia-se coisa, e isso ‘caso não se encontrem juntas nele também as ideias de um animal, de uma planta, de uma pedra e de todos os universais’, como se, para conhecer que eu sou uma coisa que pensa, eu devesse conhecer os animais e as plantas, posto que eu devo conhecer o que se nomeia coisa ou, então, o que é, em geral, uma coisa [FA, II, p. 805; AT, VII, p. 362.]. Ao referir subitamente a ideia de coisa à coisa que pensa e ao pretender fundá-la exclusivamente sobre essa última, Descartes não rejeita somente, de maneira explícita, toda interpretação do ser a partir do ente e como ser do ente. Ele faz com que sejam dados os primeiros passos de uma disciplina inteiramente nova, aquela que, depois dele, não seria quase nada desenvolvida, e à qual denominaremos doravante como fenomenologia material. Nessa fenomenologia, não é o fato de aparecer que é considerado, em relação ao que aparece, por sisi mesmo e em sua diferença radical, mas é seu conteúdo que é explicitamente e exclusivamente levado em conta, [55] todavia, enquanto conteúdo ontológico e puro conteúdo fenomenológico. Nesse ponto, encontra-se o que significa, inicialmente, a ideia de res cogitans, porquanto ela é uma coisa da qual toda essência é pensar, quer dizer, da qual a substancialidade e a materialidade são a substancialidade e a materialidade pura como tais, e nada mais. MHPsique:53-55]