Filosofia – Pensadores e Obras

ser e valor

A palavra bondade, vem de bom, que tem bem. Há a bondade absoluta e a bondade relativa.

A primeira funda-se na perfeição; a segunda, na sua relação.

Todo ente tem bondade (relativa). Há ainda a bondade em si e a bondade para outro. A unidade é a coerência da tensão e revela uma bondade em si, podendo apresentar bondade, segundo os planos (bondade relativa).

Modernamente se substitui o termo bondade pelo de valor, que o contém. Na “axiologia” veremos que o ser é valor, e o valor é ser, apesar das inúmeras opiniões contrárias e diversas. Mas a ideia de valor é também análoga, pois o valor é unívogo e também equívoco, sem ser exclusivamente nem um nem outro, portanto é análogo. Todo ser tende a realizar o seu bem, o seu valor. É ele, intrinsecamente, um valor que realiza valores.

Daí os escolásticos dizerem ens et bonum convertuntur, ser e bem (valor) são convertíveis. Como poderia o bom ser bom sem ser? Todo ser é um valor na proporção que é, e desejável segundo a sua perfeição. Valor e ser, que se identificam dialeticamente no ser, se distinguem, porém, porque o valor intrínseco do ser será o próprio ser, enquanto valerá ante outro, extrinsecamente, segundo a desejabilidade que provoca ou satisfaz; mas tal desejabilidade já implica a anterioridade do valor que o provoca, como veremos na “axiologia”.

Segundo esse conceito de valor, o problema do bem e do mal se tornará mais claro, e não teremos necessidade de escamotear a positividade do mal para explicá-lo, reduzindo-o apenas a uma privação de ser, que nos leva, muitas vezes, se tivermos cuidado, a cair numa escolaridade do ser, enquanto tal, o que nos põe ante as mais difíceis situações aporéticas.

Se todo o ser é bom, como surgiu a mal? Neste caso, o mal seria uma espécie de não-ser. A solução excludente leva a privar a presença do que embaraça. Por não serem dialéticos, muitos filósofos caíram na aporia do mal, que os enleou, de tal maneira, que este problema, um dos mais importantes da teologia, exige um tratamento todo especial, o que faremos em lugar oportuno.

Em suma: todo ser é valor. O conceito de valor pode converter-se no de ser e vice-versa.

Mas o Ser, como valor supremo, é um valor incondicionado, enquanto os entes são valores condicionados.

Demonstremos: O ser é o sujeito de todos os predicados e o predicado de todos os sujeitos. É ser tudo quanto é sujeito de um predicado, é ser tudo quanto é predicado de um sujeito.

Os entes (que são todos também ser) enquanto ser, o são em si ou em outro.

Mas tudo pode ser considerado em si ou em outro, pois tudo tem como subsistência final o ser (todo existente tem sua subsistência próxima ou remota no ser).

A condicionalidade do existir implica a condicionalidade do valor.

Todo existente é um valor condicional, e apresenta tantas quantas possibilidades relacionais, condicionais, etc.

Só o ser supremo é incondicional e incondicional também como valor.

Todo o ser revela um valor condicionado a outros, tanto em sua imanência, como valor das partes componentes de uma tensão para com a unidade tensional, como desta em face das estruturas a que pertença ou das estruturas com as quais se antagoniza.

A variabilidade do valor condicionado segue paralela a condicionalidade do existir, e as duas se convertem.

Por haver condicionalidade do existir, há condicionalidade do valor, por haver condicionalidade de valor, há condicionalidade do existir.

Todo valor é assim, no campo existencial, variável, como o existir é variável, sem que o ser o seja. O ser subsistente, e subsistência de tudo quanto existe, enquanto tal, é incondicionalmente valioso. E essa subsistência final é a superessencialidade do ser supremo, que é um valor incondicionado, por isso é transcendência de todo existir. [MFS]


A teoria das relações e das distinções entre o ser e o valor só pode ser exata até o ponto em que não se confunde o ser com o atual. Parece-me que tal confusão vem de Leibniz: segundo Leibniz, o objeto da filosofia não é o ser, mas o possível, porque o possível é mais do que o ser, abrange o que é e o que pode vir a ser. Mas isto é uma concepção que confina o ser ao atual; que supõe que o possível ainda não é ser, mas apenas condição de possibilidade lógica. Ora bem, alargadas as bases desta condição de possibilidade (que também se estenderá ao a-lógico) ela se tornará o mundo dos valores; e esse mundo dos valores será visto, não como distinto, mas como separado do ser, isto é, do atual. — Esta tese poderia ser facilmente refutada pelo filósofo aristotélico sob o justo argumento de que ela se funda na ignorância de que o ser não é só o atual, mas também o possível.

Suponho que uma filosofia de tipo aristotélico não está particularmente aparelhada para acolher uma teoria dos valores, porque o aristotelismo leva a identificar, no contingente e no relativo, o valor com o ser. O valor se apresentará como determinação ou qualidade do ser, (ou antes, nos quadros da filosofia escolástica, o valor se apresenta como relação de conveniência entre o sujeito e a cousa valiosa; o valor não é o bem na teoria escolástica, como facilmente se poderia julgar. O bem é o ser como portador de valor e o valor é a própria relação de conveniência; o valor em sentido estrito é a ratio boni, ou a razão formal da bondade; o valor é uma relação, nos quadros da escolástica, mas uma relação real, não uma simples relação de razão. Onde não houver uma relação real, também não haverá um valor real. É o caso por exemplo da relação de igualdade entre duas moedas, citado pelos teóricos do valor. A relação de igualdade entre duas moedas é uma relação fundada no real, porque pode haver também duas moedas que não sejam iguais. Entendo portanto que nem todos os argumentos que se têm lançado contra o aristotelismo e o tomismo na teoria dos valores, são igualmente válidos.) — Em Aristóteles e em Santo Tomás o ser não é só ato, mas também é a potência, graças à qual o ato se realiza. Quando se diz que os valores são princípios condicionais, pode-se também entender esta afirmação no sentido de que os valores são potências tendidas para o ato, de que os valores dão a configuração, os limites e a possibilidade de sua própria realização no existente atual; e, uma vez realizados, ou convertidos em atos, são como formas que dão significado à matéria. — O argumento anti-aristotélico parece que se funda aqui numa confusão do ser com a sua existência efetiva, confundindo-se então o ser com o simples ser fático. É comum a muitos filósofos confundirem o real com o sensível, o ser com os seus acidentes, ou com o que está sujeito às determinações de espaço e tempo. Mas uma noção assim restrita do real empobrece extraordinariamente o real, reduzindo-o ao que é petrificado e morto e deixando escapar exatamente o que é mais real do que a realidade espacio-temporal, isto é, deixando escapar o fundamento metafísico do real.

Toda a teoria que não afirmar a plena realidade do valor no Absoluto incorrerá numa separação incabível entre o ser e o valor; é verdade que não falarão em separação mas em distinção; e todavia, tratarão a distinção como se fosse separação; a confusão entre distinção e separabilidade, que vem de Duns Scott e que foi consagrada por Descartes, tem longa história na filosofia moderna. E por isso é que muitos teóricos, ao dizerem que o ser e o valor são apenas distintos, em verdade os tratam com separáveis e separados.

Ora bem, depois das sutis elaborações da filosofia escolástica, que soube claramente ver o que é distinção e o que é separação, podemos dizer que o ser e o valor são distintos, mas não são separáveis. A essência e a existência são distintas mas inseparáveis; e essa distinção mesma desaparece no absoluto, onde o valor se identifica com o Ser. E nunca se deve esquecer que, mesmo para os filósofos augustinianos, a distinção entre ser e valor é de ordem lógica, não de ordem ontológica, e menos ainda de ordem metafísica.

Toda separação entre ser e valor vem da negação da transcendentalidade do ser, tal como essa transcendentalidade foi compreendida pelo realismo tradicional. Desde que a filosofia moderna negou a transcendentalidade do ser, impôs essa absurda separação entre valor e ser. Se o valor está separado do ser, o ser não é transcendental, em sentido metafísico, porque o ser então não abrange tudo, não abrange o valor; e não abrange o valor, porque o valor é concebido, não só como separado do ser, mas também como irreal. São numerosas as teorias que afirmam a irrealidade do valor. E resultam de uma posição que isola necessariamente o valor e o ser e que poderia ser criticada como arbitrária sob vários pontos de vista: porque os valores, mesmo puros, não estão separados do ser. No Absoluto o valor e o ser são uma só identidade, e, no concreto imediato, o valor só se manifesta quando aderido a um ser, quando um ser se torna seu portador, ou a sua expressão. Ou ainda, se é segundo os valores, ou os modelos externos que a realidade se faz, então os valores são mais que reais, porque é segundo eles que a realidade se faz. São proto-formas ou proto-tipos do real. São a realidade do real. O belo modelar é mais real que o belo sensível, porque é segundo ele que o belo se realiza no sensível.

Além disso, se o valor é irreal, não se vê como possa ser objetivo e transcendente, exceto no sentido duma transcendência idealista, uma transcendência posta pelo próprio homem. Ora, suponho, a partir da realidade do valor, que é o Transcendente que põe o homem e não o homem a transcendência. Uma transcendência posta pelo homem não tem nenhum alcance metafísico; torna-se mero sinônimo de exterioridade.

A separação entre ser e valor, juntamente com a confusão entre separação e distinção, vem de uma atitude que rejeita a existência do absoluto e portanto a possibilidade de fundar o valor no Ser Absoluto.

Ora, se o valor não se fundar metafisicamente no Ser Absoluto, ele se torna imanente, torna-se uma projeção da subjetividade, de base lógica ou psicológica. Novamente se cairá numa confusão inevitável entre valor e consciência do valor. Abolida a transcendência metafísica, a imanência do valor se torna irremediável; e a vivência do valor não se explicará sequer a si mesma, porque não saberá como é que, sendo imanente, se sente a si mesma como em contato com a transcendência. Negado o Absoluto, será inútil evitar o relativismo e as insuficiências da subjetividade, eliminando o arbítrio da consciência individual, para transferi-lo à consciência de uma cultura ou à consciência do homem em geral. A consciência do homem em geral, ou a consciência de. um grupo social, é tão subjetiva como a consciência do indivíduo particular; porque, afinal, a consciência do homem coletivo é apenas uma abstração operada sobre as consciências individuais. A consciência coletiva é uma comunhão de consciências individuais, que não têm suporte, nem realidade fora destas últimas. — O valor é qualitativo e inespacial, exatamente como a consciência, e, por isso mesmo, o qualitativo e o inespacial do valor, não excluem, por si, a subjetividade do valor, nas teorias que negam o Absoluto. Objetivo não é sinônimo de supra-individual. A única verdadeira objetividade do valor só se pode por com a objetividade e a transcendência do Absoluto, entendidos estes termos fora de qualquer idealismo.

Os grandes teóricos do valor, que foram Max Scheler e Nikolai Hartmann, (este último apesar do seu ontologismo) revelaram suficientemente que, numa teoria dos valores que queira torná-los objetivos, o indivíduo particular ou geral que os avalia não tem importância fundante. Os valores são metafísicos e meta-humanos. São princípios modelares que se fundam no Ser Absoluto e permanecem indiferentes à corrupção das cousas em que se exprimem.
Em suma, parece-me que as meditações axiológicas a que se têm entregue os pensadores deste século, mostraram a impossibilidade de conciliar a realidade dos valores com qualquer subjetividade antropocêntrica. A filosofia dos valores, para fundar os valores, teve que transpor os limites do racionalismo, do empirismo, do positivismo e do idealismo. Teve que afirmar o Espírito, sem o qual os valores são inexplicáveis. Teve que restaurar a dignidade da intuição emocional no conhecimento de certas realidades, que a inteligência por si não pode apreender. Teve que afirmar a existência do Ser Absoluto, sem o qual não se poderia compreender a unidade metafísica do valor e do Ser.

Por isso disse Johannes Hessen: “Uma filosofia dos valores que não procurasse achar a relação que existe entre os valores e o Ser Absoluto, ou aquela realidade última a que as religiões chamam Deus, seria incompleta”. — E seria também impossível, acrescentamos. [Barbuy]