(in. Spinozism; fr. Spinozisme; al. Spinozismus; it. Spinozismó).
Doutrina de Baruch Spinoza (1632-77), nos principais aspectos reconhecidos pela tradição filosófica, que podem ser assim resumidos: 1) unicidade da substância do mundo e sua identificação com Deus, graças à qual Spinoza se refere à substância com a expressão” Deus sive natura”; 2) ateísmo ou, como também se diz (com Hegel), acosmismo, segundo o qual Deus é o princípio e a ordem do mundo; 3) o necessitarismo, segundo o qual todas as coisas derivam por absoluta necessidade da substância divina; 4) o geometrismo, afirmação do caráter geométrico da necessidade cósmica que é o modelo do método geométrico da filosofia; 5) redução da liberdade humana ao reconhecimento e à aceitação da necessidade da ordem cósmica; 6) defesa da liberdade filosófica e religiosa do homem, fundada na redução da fé religiosa à obediência (v. fé). [Abbagnano]
O filósofo judeu Baruch Spinoza (1632-1677) expõe seu sistema principalmente na “Ética”, que pretende ser uma introdução à vida feliz por meio do domínio dos afetos. — Só existe uma substância única, necessária, eterna e infinita: Deus, que se define como “aquilo que é por si e só por si se concebe, por outras palavras, aquilo cujo conceito não precisa, para sua formação, do conceito de outra coisa”. Por isso, é causa de si mesmo. Atributo é um aspecto da plenitude essencial da substância divina. Do número infinito de atributos só dois nos são conhecidos: o pensamento e a extensão, idênticos com Deus e entre si, mas que exprimem duas facetas diferentes de Deus — Os modos são as formas limitadas de manifestação dos dois atributos infinitos de Deus por nós conhecidos, isto é, as coisas finitas nas quais o paralelismo de ambos os atributos se manifesta como alma e corpo. — A alma humana é somente a ideia de seu correspondente corpo e desaparece com a desagregação deste. Do mesmo modo que em Deus coincidem os atributos, assim no homem coincidem os modos do pensamento e da extensão. Sendo assim, compreeende-se a correspondência existente entre os momentos de desdobramento de uns e outros. Todavia, para o nosso conhecimento não existe ponte alguma do corpóreo para o espiritual, ou vice versa, nem na sucessão infinita dos modos descobrimos, em parte alguma, a substância que os sustenta, mas tanto no reino das ideias quanto no dos corpos deparamos com uma “causalidade” puramente imanente.
Spinoza ensina um panteísmo estreme: Deus é a “natureza naturante” (natura naturans); os modos são a ‘ ‘natureza naturada’’ (natura naturata); no fundo tudo é uma só coisa. Seu racionalismo unilateral dilui também o “querer” no pensamento e não reserva lugar algum para a liberdade, nem em Deus nem nas criaturas. Consequentemente, a diferença entre o bem e o mal foi mantida só em palavras. Também não faz sentido falar de “fins” num sistema construído geometricamente. — Atacada parcialmente com acrimônia durante a vida de Spinoza, contudo sua filosofia exerceu poderoso influxo sobre os pensadores subsequentes, principalmente pela unidade do universo sublinhada de modo exclusivo e em parte também por sua doutrina dos afetos. Sofreram a influência de Spinoza, entre outros, Schelling com o seu sistema da identidade, Schleiermacher e Goethe. — Spinoza não logrou jamais suprimir a contradição entre Deus imutável e seus modos variáveis. — Rast. [Brugger]
O spinozismo é talvez o maior esforço de honestidade intelectual registrado pela história das ideias. Queremos dizer que a inteligência aí aparece libertada e em estado puro e que mesmo para ter acesso a Deus não necessita de recorrer a uma fé ou a uma revelação, bastando-lhe lançar mão de suas próprias forças.
E por que teria tal necessidade, uma vez que, se ela não é Deus no seu todo, é pelo menos uma parte e um “modo” de Deus e, para encontrá-lo, precisa apenas voltar-se sobre si mesma?
Esse Deus é todo inteligência, é a Inteligência; é ele que dá valor a todos os valores da inteligência, como dá o ser a todos os seres, e a todos os valores humanos, embora não lhes constitua a substância. Ele é a verdade, ele a faz, e essa verdade é a própria substância, a sua substância. Não poderia ser obrigado nem tampouco obrigar-se a si mesmo; não poderia submeter-se a um decreto, fosse embora tal decreto promulgado por ele. Se assim lhe aprouvesse, as coisas não seriam absolutamente o que são, nem as ideias, nem mesmo o mecanismo das ideias, e a soma dos ângulos de um triângulo não seria igual a dois ângulos retos: tornamos, assim, a encontrar Duns Escoto.
É neste sentido que falamos da honestidade intelectual de Spinoza. Nada lhe perturba a dedução, e o sentimento não consegue alterá-la no mínimo ponto. Não é por necessitarmos de Deus que Deus existe, como não é por necessitarmos da justiça que a justiça existe; não é por sermos infelizes e precisarmos de consolo que existe uma misericórdia e uma consolação celeste. Deus existe em função de si mesmo, não em função de nós, e basta que ele exista para existir da maneira que se mostrou, isto é, difuso no universo que. ele modela à proporção que se modifica. Não é de modo algum, como no cristianismo, um Pai amante e compassivo, e aí se vê que Spinoza não era cristão. Deus é a unidade primeira, fundamental e total, apreendida pela inteligência que dela deriva a construção do mundo através de um raciocínio rigoroso que não comporta nenhuma ação fora da sua ação própria… Não é essa inteligência, aliás, o próprio Deus, uma vez que Deus está em tudo e é tudo? A piedade, o amor, na medida em que nos toca, não aparece neste sistema construído por uma dialética inumana e perfeita senão como uma espécie de acidente pessoal.
O pensamento não atinge esta perfeição a não ser quando se limita e tudo limita a si mesmo, quando já não é — repitamo-lo ainda uma vez — mais que inteligência pura. Posto o Uno inteligível, dele se faz derivar e a ele se relaciona tudo que se quiser de acordo com a época, as circunstâncias, as crenças e o gênio próprio. Tudo se resolve ou se dissolve em Brama desde que Brama existe; na ideia do soberano Bem está incluído o mundo das Ideias; a processão e a conversão neoplatônicas, com todas as suas variedades, derivam do Uno primordial. Spinoza dispensa essas concepções religiosas, semi-religiosas ou mesmo sentimentais. Basta-lhe partir do Ser causa de si mesmo, do Ser cuja essência envolve a existência, postulado lógico donde não pode deixar de derivar tudo e donde tudo efetivamente deriva, por via lógica. A operação tem de ser bem sucedida por força, uma vez que o pensador se coloca no ponto de vista do idealismo absoluto, isto é, dum sistema em que a realidade, transferida exclusivamente às ideias, lhes faculta um jogo infalível. O único inconveniente é que, na nossa condição humana, essa realidade já nada tem de comum com a realidade sensível, a única a que possamos ter acesso, sendo apenas uma transposição e uma figura desta última, e destarte os nossos mais sublimes filósofos correm o grande risco de nos divertir ou de nos iludir com simples jogos de palavras.
Spinoza, a princípio muito mal compreendido, não conquistou desde logo o lugar em que hoje o colocamos. Seria mais acertado dizer que não se quis compreendê-lo. Numa época em que o poder religioso vigiava ciosamente o pensamento, em que a própria opinião pública não discernia o pensamento das convicções religiosas, tudo que se viu nele foi um adversário e o negador de uma fé, de dogmas e de ritos que ele passava em silêncio. Esse Deus universal ou esse Deus-Universo, fruto exclusivo da concepção do espírito e que já não era o Deus do Velho nem do Novo Testamento, aparecia como o aniquilamento mesmo de Deus e foi a acusação de ateísmo a que mais pesou sobre o autor da Ética. E é o caso, realmente, de perguntar se Deus ainda subsiste quando tudo se torna Deus.
Eis aí por que Spinoza, após ter sido rejeitado pelos da sua raça foi perseguido pelos fiéis de uma outra crença. Não se examinava o valor intrínseco do sistema, a sua contextura lógica, a sua legitimidade intelectual; só se viam os seus resultados; menosprezavam-se-lhe a psicologia, os valores morais, e amaldiçoava-se o homem que subvertera uma antiga tradição… ao mesmo tempo que outros contemptores desta tradição não se serviam dele por puro espírito de partido e sem querer aprofundar-lhe o pensamento.
Não causará surpresa que o descobrimento tardio de Spinoza tenha sido feito na Alemanha durante os séculos subsequentes, que ele tenha sido celebrado por Lessing, Jacobi e Goethe e que a sua filosofia tenha marcado fortemente a de Fichte ou de Hegel. A França e a Inglaterra seguiam outro caminho. Foi Renan, contudo, que disse acerca desse pensador em que tornava a encontrar o seu niilismo idealista: “Foi, no seu tempo, aquele que viu mais profundamente em Deus.”
Não se pode negar que Spinoza tenha sido profundamente impregnado de divino. Mas o caráter amorfo do Deus do panteísmo se presta singularmente para diluí-lo, dissolvê-lo e despojá-lo de todo caráter formal ou transcendente. Daí ao ateísmo ou a um materialismo mais ou menos larvado não medeia grande distância.
Remy Collins crê observar que o panteísmo de Spinoza anima ao mesmo tempo “o monismo de Haeckel e o coletivismo de Karl Marx, de Engels, de Feuerbach, de Stalin…”. Bastou-lhes apenas aplicar os princípios do spinozismo, mas é provável que o próprio Spinoza não se reconhecesse neles.
Esses princípios, esse fundo, são o homem tirando tudo de si e do exercício exclusivo do seu espírito, e a realidade única atribuída ao espírito e ao seu exercício. Donde a pura e simples divinização do espírito, que faz, apesar de tanta grandeza, a fraqueza irremediável do sistema. Veremos, com um Berkeley, até onde pode chegar o idealismo puro; é significativo que, numa Introdução à vida do espírito, Leon Brunschvicg não mencione sequer o nome de Deus e que Julien Benda erija em seu mestre o mais célebre dos seus correligionários. Spinoza — e é neste ponto que se revela também um dos mestres do mundo moderno, e um dos que mais profundamente influíram nele — Spinoza reduz tudo ao homem e não sai do homem, na sua explicação deste; não recebe nada que não provenha do homem. Já não há aqui ocasião para discutir sobre as relações da fé e da inteligência: a inteligência é soberana absoluta. Donde o perigo da especulação metafísica mais vasta e ao mesmo tempo mais sutil que se tenha imaginado. Apresenta um encadeamento irrepreensível, onde não falta um só elo. Mas, apesar do ardor peculiar ao mecânico, este mecanismo permanece um mecanismo; falta o mecânico supremo; em suma, falta Deus ao Deus de Spinoza. [Truc]