Filosofia – Pensadores e Obras

ontológica

ONTOLÓGICA (PROVA) – A prova de Santo Anselmo para a existência de Deus passou a chamar-se, a partir de Kant, prova ontológica, e também argumento ontológico.

Tal como foi formulada nos quatro capítulos do PROSLOGION, a prova desenvolveu-se assim: Santo Anselmo assinala, no capítulo primeiro que, segundo os SALMOS (treze, 1), o néscio disse no seu coração: não há Deus Este Deus é algo, maior que o qual nada pode pensar-se. Mas quando o néscio ouve esta expressão entende o que ouve e o que entende “está no seu entendimento” mesmo que não entenda que esse algo, maior que o qual nada pode pensar-se, existe. Pois uma coisa é a presença de algo no entendimento, e outra coisa é entendê-lo. Ora, o néscio deve admitir que o que ouve e entende está no entendimento. Mas, além disso, tem de estar na realidade. Com efeito, se só estivesse no entendimento aquilo de que não pode pensar- se nada maior, não seria o maior que pode pensar-se, pois faltar-lhe ia, para isso, ser real. “se aquilo, maior que o qual nada pode pensar-se – diz Santo Anselmo -, está unicamente no entendimento, aquilo mesmo, maior que o qual nada pode ser pensado, será algo maior que o qual é possível pensar algo”. Deve portanto existir, quer no entendimento, quer na realidade, algo maior que o qual nada pode pensar-se, e este algo é precisamente Deus.

Afirmou-se que há no PROSLOGION de Santo Anselmo, dois argumentos ontológicos distintos:

1) Algo é maior, no caso de existir, do que no caso de não existir;

2) algo é maior se existe necessariamente do que se não existe necessariamente.

O argumento 1) funda-se na ideia de que a existência é uma perfeição; o argumento 2), na ideia de que a impossibilidade lógica de não existência é uma perfeição.

A primeira prova foi a que ocupou mais os filósofos que se propuseram explicar a validade do argumento anselmiano. Muitos entenderam o argumento como a afirmação de que o maior que pode pensar-se tem de ser real, pois, de contrário, faltando-lhe a realidade, não seria o maior que pode pensar-se, mas simplesmente a ideia do maior pensável. O maior que pode ser pensado é também, portanto, o perfeito. se trata de uma passagem da essência à existência, não é, pois, a passagem de qualquer essência a qualquer existência, mas apenas o fato de, quando se trata de um ser perfeito e infinito, a existência estar implicada pela sua essência. Deste modo refuta já o próprio Santo Anselmo a objecção que lhe foi feita por Gaunilo em “EM DEFESA DO NÉSCIO”. O fato de uma ideia como a de ilha perfeita não precisar de existir na realidade não é motivo suficiente, diz Santo Anselmo, para que deixe de existir nela a própria perfeição infinita. Pois entre os dois tipos de perfeição há uma diferença fundamental: o primeiro é o perfeito no seu gênero e é a qualidade de uma coisa; o segundo é o perfeito em si, e é a própria coisa. Não é, pois, de estranhar que a partir de Santo Anselmo a posição tomada perante a prova seja decisiva para a intelecção do sentido de uma filosofia. Duns Escoto, Descartes, Leibniz, Malebranche e Hegel admitem, com variantes e distintas fundamentações, a prova anselmiana. Com outras variantes e fundamentos, S. Tomás, Locke, Hume e Kant rejeitam-na.

S. Tomás critica a prova. Posta em forma silogística, aceita a maior (que por Deus se entende o ser maior que pode pensar-se), mas não aceita a menor (que deixaria de ser o maior e mais perfeito que se pode pensar se não existisse atualmente). Com efeito, aceita que deixaria de ser o sumo, mas o fato de que se não tivesse existência extramental deixaria de ser o sumo é admitido só na ordem real não na ordem ideal. A proposiçãoDeus existe” é evidente em sisi mesmo, mas não relativamente a nós; portanto, pode demonstrar-se que Deus existe, mas não por uma prova a priori, nem simultânea, mas apenas a posterior.. Daí as célebres cinco vias, propostas por S. Tomás; parte-se em cada caso de um efeito, de um grau de perfeição, etc, para chegar à causa primeira, ao ser perfeito. Duns Escoto tenta, em contrapartida, uma defesa da prova anselmiana sempre que se proceda a modificações em alguns aspectos. Segundo Duns Escoto, a prova em questão pode ser modificada ou retocada do seguinte modo: o que existe é mais cognoscível que o que não existe, isto é, pode ser conhecido mais perfeitamente. O que não existe me si mesmo, ou em algo mais nobre ao qual acrescenta algo, não pode ser intuído… Mas o intuível (visível) é mais perfeitamente cognoscível que o não intuível; portanto, o ser mais perfeito que possa conhecer-se existe. Duns Escoto põe em relevo que, para aceitar a prova anselmiana, há que partir de que Deus é um ser cognoscível sem contradição. Só por “o ser maior que pode pensar-se” relativamente à sua essência, será o “ser maior” relativamente à sua existência. Se o “ser maior que pode pensar- se “ estivesse só no entendimento que o pensa, poderia ao mesmo tempo existir (já que o pensável é possível) e não existir (já que não lhe convém existir por meio de uma causa alheia). A prova anselmiana foi defendida por Descartes em várias passagens das suas obras, especialmente nas MEDITAÇÕES (III, V). Descartes insiste na ideia de infinitude e afirma que enquanto é certo que possuímos a ideia de infinito, e inclusive que esta ideia é mais clara que a de finito, tal ideia não pode ter surgido de um ser finito, mas tem que ter sido depositada nele por um ser infinito, isto é Deus. Como disse depois Malebranche, o finito só pode ver-se através do infinito e a partir do infinito.

Leibniz defende a prova introduzindo a sua conhecida correcção: não basta passar da ideia de ser infinito i perfeito à realidade, mas há que demonstrar previamente a sua possibilidade. Mas como a possibilidade é demonstrada, torna-se patente a realidade. As correntes empiristas rejeitam energicamente a prova. Especialmente Locke e Hume. A separação estabelecida por este último entre as proposições analíticas e as que se referem a fatos será suficiente para dar uma base à crítica da prova, mas, além, disso, verifica-se que, um raciocínio a priori não pode produzir qualquer entidade, uma vez que não há nenhuma experiência limitante.. No fundo, portanto, o suposto último da aceitação ou rejeição da prova consiste na ontologia que cada um dos pensadores tem como base do seu pensar.

Kant escreveu que o ser não é um predicado real, isto é, um conceito de uma coisa, mas a posição da coisa ou de certas determinações da coisa em si mesmas. “a proposiçãoDeus é todo poderoso” contém dois conceitos que têm os seus objetos: Deus e todo poderoso. O termo é, não é por sisi mesmo, todavia, um predicado, mas unicamente, aquilo que põe em relevo o predicado com o sujeito. Ora, se eu tomo o sujeito Deus com todos os seus predicados (nos quais também está incluída a omnipotência), e digo que Deus é ou que ele é um Deus, não acrescento nenhum predicado novo (isto é, nenhum conceito-predicado) ao conceito Deus; não faço se não pôr o sujeito em sisi mesmo com todos os seus predicados, e ao mesmo tempo, é evidente, o objeto que corresponde ao meu conceito. Ambos devem conter exatamente a mesma coisa e, portanto, não pode acrescentar-se ao conceito que expressa simplesmente a possibilidade nada mais pelo fato de que eu concebo (mediante a expressão e) o objeto como dado absolutamente”. O real não contem mais notas que o possível (pensado); cem moedas reais não contêm mais (a meu ver) que cem moedas possíveis. Para que haja realidade, deve haver um ato de “posição dela” sem que baste supor que o objeto está contido analiticamente no conceito. Ora, o fato de o ser não ser um predicado real altera radicalmente a possibilidade de dar um significado às proposições do argumento ontológico. Segundo Kant, que nisto estaria plenamente dentro da linha de Hume, não pode haver separação entre a coisa e a existência da coisa; ambas são, dizia Hume, uma mesma realidade, de tal modo que a proposição “algo existe” não é a junção de um predicado, mas a expressão da crença (a posição) na coisa. Assim se nega aquilo que tinha constituído o suposto próprio não só da prova anselmiana, mas também das formas que lhe foram dadas por Leibniz e Descartes. O fato de a existência pertencer às perfeições, o fato de a própria possibilidade de demonstrar a ideia absoluta não são, neste caso, suficientes, pois o que aqui fica alterado é a própria função do juízo. Para Kant, o juízo existencial é um juízo categórico no qual a relação entre sujeito e predicado não é uma relação entre dois conceitos, mas entre um conceito que ocupa um lugar do sujeito e o objeto. Alguns pensam que o que acontece com o argumento ontológico é, pois, uma confusão: a de uma definição nominal com a de uma definição real, e a de um juízo negativo com um juízo positivo. Por outras palavras, no argumento supõe-se que Deus é um ser infinitamente perfeito quando isto pressupõe aquilo que se tratava de demonstrar, isto é, a existência de Deus. Assim se pode afirmar que aquilo que reside na natureza de uma coisa não pode dizer-se a priori categoricamente, mas só hipoteticamente. A opinião kantiana de que “a absoluta necessidade do juízo não é uma necessidade absoluta das coisas” deve transformar-se na ideia de que, no que diz respeito ao ser perfeito, a sua a verdade é necessária, embora não apriorística para nós. Os que, seguindo Hegel, consideraram que “o finito é algo não verdadeiro”, reabilitaram a prova, possivelmente porque seu fim último consiste na afirmação do infinito atual como realidade positiva e não, como Hegel já assinalava, a contraposição da representação e existência do finito com o infinito. Quando os idealistas negaram o reforço hegeliano da prova, foi porque se fez uma distinção entre a perfeição teórica – cuja demonstração se admitiu – e a perfeição prática – cuja prova se negou. As tendências empiristas rejeitaram geralmente a prova ou consideraram que ela remete, em última análise, para um fato suficiente seja, além disso, existente. Pois a razão suficiente seria unicamente de caráter analítico e tautológico, mas nunca poderia ter um fundamento existencial. Assim, algumas das últimas tendências, simultaneamente empiristas e analistas, rejeitaram a prova – e, em geral, qualquer argumentação acerca de um princípio transcendente – não só pela alegada impossibilidade da sua comprovação ou verificação empírica, ou pelas falhas descobertas na própria trama da argumentação racional, mas porque as proposições contidas nela foram consideradas como carentes de significação, isto é, como pseudoproposições que não se referem nem ao lógico-tautológico nem ao empiricamente comprovável.. Em contrapartida, na medida em que a questão do ser continua a ser considerada como capital na meditação filosófica, uma análise da prova – seja qual for o resultado a que conduza -.- voltará a pôr sempre de um modo radical os problemas fundamentais da filosofia. Deste ponto de vista, pode dizer-se que não são tão incompatíveis como poderia parecer à primeira vista a própria forma de pôr a questão por parte da tradição anselmiana e por parte das argumentações que apontam a necessidade de ir da coisa para o princípio. com efeito, penetrar nos supostos íntimos da prova parece obrigar a partir do nada e a dizer-se que, se algo existe, deve existir algo que exista necessariamente. Se há algo, deve, pois, haver um princípio; ora, este princípio tem necessariamente de existir, porque precisamente existir é para ele existir necessariamente. Se, portanto, há algo, deve haver um princípio necessário. Assim, quer se parta da coisa para ir para o princípio, quer se parta do nada para se pôr o problema da justificação da coisa, o problema do princípio necessário parece iniludível. É isto que faz da prova ontológica um tema obrigatório de qualquer meditação do ser. [Ferrater]