(in. Mechanism; fr. Mécanisme, al. Mecanismus; it. Meccanicismó).
Toda doutrina que recorra à explicação mecanicista. Entende-se por explicação mecanicista a que utiliza exclusivamente o movimento dos corpos, entendido no sentido restrito de movimento espacial. Nesse sentido, é mecanicista a teoria da natureza que não admite outra explicação possível para os fatos naturais, seja qual for o domínio a que eles pertençam, além daquela que os interpreta como movimentos ou combinações de movimentos de corpos no espaço. O mecanicismo pode ser considerado: 1) uma concepção filosófica do mundo; 2) um método ou princípio diretivo da pesquisa científica.
1) Como concepção filosófica do mundo, o mecanicismo apresentou-se desde a Antiguidade como atomismo . A concepção do mundo como sistema de corpos em movimento, como uma grande máquina, é típica do atomismo antigo. O materialismo dos sécs. XVIII e XIX retomou essa concepção, que tem as seguintes características: d) negação de qualquer ordem fina-lista; a polêmica entre mecanicismo e finalismo começou a partir de séc. XVII, quando o mecanicismo se firmou com o surgimento da ciência moderna; atualmente muitas vezes o termo mecanicismo é interpretado apenas como negação do finalismo ; b) determinismo rigoroso, representado pelo conceito de causalidade necessária infiltrada em todos os fenômenos da natureza; hoje é considerada como não-mecanicista qualquer concepção do mundo que negue o determinismo rigoroso.
As duas características acima são tipicamente expressas pela filosofia de Hobbes, que constitui um dos melhores exemplos de mecanicismo filosófico (v. materialismo). Por outro lado, a visão mais perspicaz que as filosofias antimecanicistas do séc. XIX assumiram perante o mecanicismo foi expressa por Lotze, em Microcosmo (1856): “a tarefa que cabe ao mecanicismo na ordenação do universo é universal, sem exceções no que se refere à extensão, mas absolutamente secundário no que se refere à importância” (Mikrokosmus, I, Intr.; trad. it., p. 10, ‘); ou, em outros termos, o mecanicismo não passa de instrumento utilizado pelo Princípio Racional ou Divino do universo para cumprir seus objetivos. Na filosofia espiritualista contemporânea, esse ponto de vista mesclou-se à crítica ab extrínseco dos princípios científicos do mecanicismo A partir das últimas décadas do séc. XIX, o mecanicismo como concepção filosófica geral deixou de ter seguidores pelos motivos a seguir expostos.
2) O mecanicismo científico pode ser considerado: a) na física; b) nas outras ciências.
a) Na física, o mecanicismo consiste na tese de que todos os fenômenos da natureza devem ser explicados pelas leis da mecânica, e que, portanto, a própria mecânica deve ter um status privilegiado entre as outras ciências, porquanto lhes fornece os princípios explicativos. Ora, a mecânica como ciência é criação relativamente recente. Arquimedes conhecia os elementos da estática, que é a parte da mecânica que trata do equilíbrio das forças, mas a dinâmica, que é o estudo dos movimentos dos corpos sob a ação das forças, era desconhecida dos antigos e foi inaugurada por Galilei e Newton. Depois, o princípio de D’Alembert unificou a estática e a dinâmica, mostrando que um problema de dinâmica pode ser transformado num problema de equilíbrio de forças, portanto de estática, tomando em consideração forças fictícias chamadas “forças inerciais”; assim, p. ex., a órbita de um planeta em torno do sol pode ser interpretada como equilíbrio entre a força de gravitação e uma força centrífuga igual e oposta. Com essa concepção, a mecânica estava de algum modo concluída em termos de teoremas fundamentais, e a partir de então sofreu transformações conceituais e linguísticas que visavam a torná-la mais coerente e simples. Desse ponto de vista, pode-se dizer que em meados do séc. XIX teve início uma segunda fase do desenvolvimento da mecânica, graças sobretudo a Hamilton, com a substituição da ideia de força pela ideia de energia. A primeira fase da mecânica foi caracterizada pela tentativa de explicar os fenômenos naturais reduzindo-os a inúmeras ações à distância entre os átomos da matéria. A segunda fase inspira-se na importância adquirida pelo princípio de conservação da energia (enunciado por Helmholtz em 1847) e pela expressão das leis fundamentais da mecânica, em termos de energia cinética e potencial. Uma terceira fase foi iniciada quase no fim do séc. XIX por Hertz, que procurou reduzir a dinâmica à cinemática admitindo como fundamental a lei do princípio mínimo: cada sistema livre persiste em seu estado de repouso e de movimento uniforme pelo caminho mais curto.
O mecanicismo em física é relativamente independente dessas mudanças da mecânica. Como já foi dito, a característica das teorias mecanicistas em física é utilizar exclusivamente as grandezas próprias da mecânica (força, massa, energia, etc). Podemos distinguir: a teoria mecanicista da descontinuidade e a teoria mecanicista do contínuo.
A teoria mecanicista do descontínuo é a teoria atômica utilizada para explicar, além da luz (teoria corpuscular), vários fenômenos; físicos como a adesão, a coesão, a capilaridade; deu lugar à teoria cinética dos gases e às primeiras teorias dos fenômenos elétricos. As teorias mecanicistas fundamentadas na continuidade só foram possíveis com a descoberta de instrumentos de cálculo diferencial mais complexos; seu exemplar é a hipótese de Fresnel sobre o éter elástico como meio de propagação das ondas luminosas. Ambas as teorias foram eliminadas da física pela teoria do campo , em virtude da qual os conceitos da mecânica deixaram de ter validade como princípios explicativos gerais da física. Simultaneamente, a outra característica fundamental do mecanicismo, o determinismo rigoroso ou necessitarista, foi eliminada em virtude da consolidação da teoria quântica (v. causalidade). Einstein e Infeld dizem a respeito: “As leis da física quântica não governam o comportamento de objetos particulares no tempo, mas as variações da probabilidade no tempo” (The Evolution of Physic, IV; trad. it., p. 298). Com essa transformação, a física saiu de sua fase mecanicista e constituiu-se como ciência da previsão provável (v. física).
b) O mecanicismo não foi apenas um princípio diretivo da física: a partir do séc. XVIII também foi o princípio diretivo de todas as outras ciências naturais, inclusive da biologia, da psicologia e da sociologia. Obviamente, fora da física, o mecanicismo teve um caráter bem menos rigoroso: nem para a explicação dos fenômenos biológicos, psicológicos ou sociológicos mais simples chegou-se à exatidão quantitativa dos modelos mecânicos empregados para explicar, p. ex., o fenômeno da capilaridade ou o da interferência da luz. Fora da física, portanto, o mecanicismo foi uma aspiração genérica, uma tese filosófica ou, na melhor das hipóteses, uma exigência genérica de método, mais que instrumento efetivo de explicação. Como instrumento de polêmica, defendeu a necessidade causal contra o finalismo; em termos positivos, afirmou em todos os campos a exigência da análise quantitativa. Afora isso, as teses do mecanicismo nos vários campos da ciência são reducionistas: em biologia, consiste em reduzir as leis biológicas a leis físico-químicas; em psicologia, consiste em reduzir as leis psicológicas a leis biológicas; em sociologia, consiste em reduzir as leis sociológicas a leis biológicas e psicológicas. A utilidade dessas tendências reducionistas foi desvencilhar o campo das respectivas ciências de estruturas conceituais antiquadas, de pressupostos metafísicos ou teológicos que estorvavam a pesquisa ou até mesmo a bloqueavam. Contudo, a ciência do séc. XX, sobretudo a partir do terceiro decênio, abandonou a postura reducionista e, portanto, o mecanicismo, sem voltar às posições às quais o mecanicismo se opunha. A biologia, p. ex., abandonou o pressuposto de que os fenômenos vitais são regidos apenas por leis físico-químicas, mas não admitiu qualquer forma de vitalismo (v. evolução; vitalismo). Pode-se dizer, portanto, que o mecanicismo foi abandonado, mas é preciso acrescentar que com ele também foram abandonadas as tendências conceptuais às quais ele se contrapunha e cuja correção representava. [Abbagnano]
A partir de Descartes, empregou-se mecânico principalmente para designar uma teoria destinada a explicar as obras da natureza como se fossem obras mecânicas e, mais especificamente, como se fossem máquinas.
Durante algum tempo, usou-se mecânico como equivalente a corpóreo e a material. Mecânico opunha-se, pois, a incorporal, a imaterial e a espiritual. Contudo, usou-se, e continua a usar-se, mecanismo para designar um modo de operação que pode referir-se, em princípio, não só às máquinas, mas também aos espíritos. Fala-se, assim, de mecanismos da mente, mecanismos do espírito, mecanismos da razão, etc.
De um modo geral, em filosofia costuma chamar-se mecanismo à doutrina segundo a qual qualquer realidade, pelo menos qualquer realidade natural, tem uma estrutura semelhante à de uma máquina, de modo que pode explicar-se à base de modelos de máquinas. É este o sentido que se dá a mecanismo, quando se trata de filosofia natural de autores como Descartes, Newton, Hobbes, etc. Nem todos estes autores entendem o mecanicismo do mesmo modo. Descartes era radicalmente mecanicista no que diz respeito à substância pensante; Hobbes, em contrapartida, era radicalmente mecanicista em todos os sentidos, uma vez que à sua filosofia pode dar-se o nome de filosofia dos corpos. Alguns outros mecanicistas eram ao mesmo tempo atomistas; Descartes, em contrapartida, não o era. Alguns autores que se interessaram mais pela elaboração da ciência da mecânica do que pela filosofia mecanicista (Newton) eram mecanicistas científicos e só em parte mecanicistas filosóficos. Por isso é fácil ver que mecanicismo é um termo complexo que encerra várias significações. Por um lado, entende-se por mecanicismo uma série de ideias próprias da mecânica nos seus três aspectos fundamentais de estática, cinemática e dinâmica. Por outro lado, entende-se por mecanicismo uma série de ideias filosóficas, quer relativas a toda a realidade natural – corpos e espíritos – quer confinadas à realidade corpórea material. Estas ideias encontraram-se comummente em estreita relação com o desenvolvimento da mecânica. Finalmente, entende-se por mecanicismo uma concepção do mundo que, por vezes, foi independente do naturalismo, e até hostil ao mesmo, mas vinculou-se, muitas vezes, a doutrinas de caráter naturalista e materialista.
Pode definir-se o mecanicismo como uma doutrina que trata a realidade – ou, consoante os casos, uma parte da realidade – como se fosse uma máquina ou como se pudesse ser explicada à base de um “modelo de máquina” (o chamado modelo mecânico). Ser uma máquina ou ser explicável à base de uma máquina não é a mesma coisa. Foi frequente, o mecanicismo, especialmente enquanto concepção do mundo, ser ao mesmo tempo uma doutrina sobre a natureza da realidade e uma doutrina sobre o melhor modo de explicar a realidade. O mecanicismo como concepção considera que a realidade consiste em corpos em movimento. Estes corpos podem, por vezes, considerar-se como um só corpo regido por leis mecânicas, mas é mais frequente admitir-se uma pluralidade, em princípio infinita, de corpos elementares; por isso o mecanicismo foi muitas vezes atomista, isto é, combinou-se com uma filosofia corpuscular… Nesse caso, o mecanicismo é uma generalização da mecânica, a qual foi definida como a ciência do movimento.
O mecanicismo como modo de explicação consiste na doutrina segundo a qual uma explicação é, em última instância, uma explicação de acordo com um “modelo mecânico”. É menos evidente em que consiste esse modelo. Com efeito, logo que se tentam determinar as condições de uma explicação mecânica deve satisfazer-se, deparam-se-nos diversas dificuldades. Para já, a chamada explicação mecânica não tem o mesmo sentido preciso quando é uma explicação de caráter muito geral, onde a única coisa que serve de orientação é a vaga ideia de máquina, e quando é uma explicação dada dentro de um corpo teorético de uma ciência. O primeiro tipo de explicação é dificilmente analisável, o último, em contrapartida, presta-se a uma análise quase completa. O fato de não ter tido em conta a complexidade da natureza da explicação mecânica – ou, se quiser, das várias possíveis explicações mecânicas – permite compreender, em grande parte, o caráter interminável das discussões acerca de se o mecanicismo moderno atingiu ou não o seu fim. Alguns autores alegam que tanto a evolução da ciência em geral, e da física em particular, como as novas ideias filosóficas, permitem falar de uma decadência do mecanicismo na ciência e na filosofia. Assim, por exemplo, as filosofias de tendência fenomenista e qualitativista, por um lado, e a importância cada vez maior de noções como as de estrutura, campo, função, etc, por outro lado, são, no entender desses autores, uma prova de que é anacrônico continuar a manter uma concepção mecanicista ou empenhar-se em continuar a dar explicações mecânicas. [Ferrater]
MECANICISMO é a tentativa de explicar mecanicamente, isto é, por meros movimentos locais de partes em si invariáveis, a estrutura íntima dos corpos e os acontecimentos da natureza em geral (mundividência mecanicista) ou em certos domínios parciais. A forma mais antiga de mecanicismo é o atomismo da filosofia grega (Leucipo, Demócrito,) segundo o qual os corpos constam de partículas (átomos) invariáveis, que entre si se distinguem só pela grandeza, forma e colocação. A mudança realiza-se apenas pelo movimento local, em que os átomos agem uns sobre os outros por pressão e choque e podem reunir-se entre si, em virtude de sua forma, para constituírem de maneira estável corpos maiores. Tudo isto, aliás, acontece com cega necessidade natural, sendo de excluir qualquer finalidade. Entre as formas posteriores de mecanicismo, Descartes e o cartesianismo conservam os tópicos essenciais do mecanicismo geral: só quantidade e número, movimento local, exclusão de quaisquer outras forças que não sejam as mecânicas, isto é, produtores de movimento, negação da finalidade. Descartes estende esta explicação à vida dos vegetais e animais; os animais são por ele tidos na conta de meros autômatos sem consciência. Todavia, o mecanicismo só se converte em materialismo, quando a vida consciente é interpretada também de maneira mecanicista, negando-se, por conseguinte, a alma essencialmente distinta do corpo, e o espírito. — Forma peculiar do mecanicismo é a chamada teoria mecânica (ou maquinal) da vida (orgânica), segundo a qual o organismo é simplesmente um sistema material, ordenado à maneira de máquina, sem sujeito substancial da totalidade nem finalidade interna, ou seja, sem um princípio vital (princípio vital) substancial. Não obstante, a teoria mecânica não reduz necessariamente todos os acontecimentos da vida a puras forças mecânicas, nem nega necessariamente toda finalidade (externa); via de regra, considerada a forma organizada da matéria como algo originariamente dado, que desde o início coexiste com a matéria não organizada. — A teoria mecânica da vida é refutada pelos argumentos que fundamentam o vitalismo. No domínio do inorgânico, o mecanicismo fracassa, pelo menos em face dos resultados da moderna física atômica. Se, por exemplo, de um quanto de luz se pode originar um par de eletrões, não se pode dar disso uma interpretação mecanicista, uma vez que o quanto de luz não pode ser concebido como composto de dois eletrões. — De Vries. [Brugger]