(gr. gignesthai; lat. fieri; in. Becoming; fr. Devenir; al. Werdent; it. Diveniré).
1. O mesmo que mudança (v. movimento).
2. Uma forma particular de mudança, a mudança absoluta ou substancial que vai do nada ao ser ou do ser ao nada. Esse é o conceito de Aristóteles e Hegel. Aristóteles afirmava: “Diz-se devir em muitos sentidos: ao lado daquilo que vem a ser absolutamente (aplos), há aquilo que vem a ser isto ou aquilo. O devir absoluto é só das substâncias: as outras coisas que vêm a ser precisam necessariamente de um sujeito, já que a quantidade, a qualidade, a relação, o tempo e o lugar vêm a ser só em referência a certo sujeito; e enquanto a substância não pode ser atribuída como predicado a nenhuma outra coisa, todas as outras coisas podem ser atribuídas como predicado a uma substância” (Fts., I, 7, 190 a 30). Portanto, para Aristóteles, os princípios do devir são os opostos, entre os quais está o devir, e a privação de um deles, já visto que “pode dizer que nada vem absolutamente do nada, mas aquilo que vem a ser, vem a ser do não-ser acidental ou relativo, ou seja, da privação daquilo que é o termo do devir” (Ibid, I, 8, 191, b 12).
Conceito não muito diferente foi expresso por Hegel ao dizer que o devir é a unidade do ser e do nada. “O devir”, disse Hegel, “é a verdadeira expressão do resultado de ser e nada, como unidade destes: não é só a unidade do ser e do nada, mas é a inquietação em si” (Enc., § 88). Na grande Lógica, Hegel ilustrou e defendeu longamente o significado dessa definição: “A verdadeira importância da proposição: ‘nada vem do nada, o nada é nada’, está em sua oposição ao devir em geral e, portanto, também à criação do mundo a partir do nada. Aqueles que se acaloram defendendo a proposição de que o nada é o nada, não se apercebem de que nisso coincidem com o panteísmo abstrato dos eleatas e substancialmente também com o spinozismo. A visão filosófica para a qual vale o princípio de que o ser é somente ser e o nada somente nada merece o nome de sistemas de identidade. Essa identidade abstrata é a essência do panteísmo” (Wissenschaft der Logik, I, livro I, seç. I, cap. I, C.; trad. it., p. 76). Na verdade, o “nada” de Aristóteles é, com efeito, um nada privativo que, assim como a privação aristotélica, está na constituição do devir. Portanto, todas as discussões a que a definição hegeliana do devir deu origem entre os hegelianos (e também entre os não hegelianos) parecem hoje completamente ociosas. [Abbagnano]
O devir é a nossa característica fundamental e a de tudo quanto no mundo nos rodeia. Por isso a filosofia se tem empenhado, desde o início, em compreender o devir, cuja questão decisiva é a relação deste com o ser. A princípio, somente se enxergavam dois caminhos: ou se deixava perecer o devir no ser, ou o ser no devir; tanto o devir como o ser eram interpretados como pura aparência. Ambos os tipos de concepção se defrontam em Parmênides e Heráclito, embora não tão acentuadamente como durante muito tempo se acreditou. No transcurso da história, mais e mais o devir tentou obter a primazia. Na medida em que é considerado Deus, constitui ele o Deus deveniente do panteísmo ou do pensamento hodierno historicamente orientado.
Uma autêntica solução do problema exige que se conservem integralmente tanto o devir quanto o ser. Neste ponto fundamental, Nietzsche está de acordo com a escolástica. Mas, logo a seguir, os dois caminhos divergem, porque Nietzsche identifica ser e devir, fazendo assim da contradição absoluta o âmago de todas as coisas, ao passo que a escolástica supera a contradição. Nietzsche não pode encontrar resposta alguma, porque, do mesmo modo que os pré-socráticos, encara o devir como algo de indecomponível, de último. Ao invés, a escolástica, inspirada por Platão e Aristóteles, penetra a estrutura íntima do devir e sua referência essencial a causas últimas e situadas acima dele. O devir é necessariamente causado: foi esta a grande descoberta de Aristóteles, ponto de partida para o desenvolvimento de sua teoria das quatro causas, teoria mais tarde ampliada pela escolástica.
A análise filosófica começa com o devir no sentido mais próprio do vocábulo, com o trânsito paulatinamente progressivo, p. ex., o crescimento de uma árvore. Quando encaramos uma determinada fase deste processo, já se alcançou uma certa realização, ao passo que as fases ulteriores não fazem senão aspirar a ela. Deste modo, o devir aparece como composto do ato já realizado e da potência, que permanece frente a ele, aguardando a realização. Estas são as causas intrínsecas ou princípios ontológicos do devir. Todavia estas causas entram no devir só por influxo da causa extrínseca eficiente, a qual se denomina extrínseca, porque não é um elemento do processo do devir; contudo não é necessário que primeiro se encontre fora daquilo que devêm. Assim, a árvore é a causa eficiente próxima de seu crescimento. Por seu turno, a causa eficiente depende, em sua operação, de uma causa extrínseca ulterior, a saber: do fim apetecido ou daquilo “pelo qual” a causa eficiente é atraída e que provoca e guia a atividade desta; por isso, todo o processo do devir tende para essa causa extrínseca ulterior (finalidade). O fim apetecido denomina-se igualmente causa extrínseca, porque não é elemento do próprio movimento do devir, mas é-lhe superior, enquanto perfeição acabada, enquanto consumação, que deve ser obtida; contudo não é indispensável que seja proposto de fora, mas pode ser proposto em primeira instância pelo próprio deveniente, do mesmo modo que a árvore, em virtude de sua enteléquia (isto é, em virtude da lei essencial nela impressa [forma]), se propõe inconscientemente como fim seu pleno desenvolvimento.
Enquanto encaramos o que devêm como algo de ativo e que se propõe um fim, não alcançamos ainda o fundamento último do devir, porque, sendo o deveniente, enquanto tal, produzido, suas causalidades eficiente e final dependem respectivamente de uma causa eficiente e de uma causa final situada acima do devir. Deve, portanto, haver, acima de todo devir, alguma coisa absolutamente superior a ele, como sua razão última; a isso deu Aristóteles o nome de “motor imóvel”; e a escolástica, aprofundando-lhe a natureza, o converteu no Ser subsistente (Deus). Este é, a um tempo, origem primeira e fim último de todo devir. A ele conduz também a tensão dos princípios ontológicos de ato e potência, porque o ato recebido na potência e por ela limitado pressupõe o ato ilimitado, subsistente, em derradeira instância o Ser subsistente. Pelo que, o devir, como trânsito do não-ser ao ser, funda-se, afinal, no Ser absoluto.
Consideremos agora as várias formas do devir. De experiência cotidiana é o devir como mudança de qualidades ou de atos acidentais num núcleo substancial invariável que os sustenta como potência passiva e, muitas vezes também, como potência ativa (devir acidental). Mais profunda é a ação do devir substancial, p. ex., de uma árvore ou de um animal, no qual a transformação afeta o próprio núcleo ou substância, visto como a potência do substrato material (p. ex., do alimento) é informada pelo ato da alma. O devir manifesta-se ainda muito mais profundamente como criação, pela qual um ser sem substrato precedente é produzido do nada. Isto só pode ser levado a efeito pela onipotência divina (criação). Aristóteles não entreviu esta espécie de devir. — Lotz. [Brugger]
Este termo significa o processo do ser ou, se se quiser, o ser como processo. Por isso se contrapõe habitualmente o devir ao ser. Designa todas as formas do chegar a ser, do ir sendo, do mudar-se, do acontecer, do passar, do mover-se, etc.
O problema do devir é um dos problemas capitais da especulação filosófica. Isso verifica-se já no pensamento grego, o qual levantou a questão do devir em estreita ligação com a questão do ser. De fato, esse pensamento surgiu em grande parte como uma surpresa perante o fato da mudança das coisas e como a necessidade de encontrar um princípio que pudesse explicá-lo. O devir como tal era inapreensível pela razão. Pode dizer-se que os tipos principais de filosofia pré-socrática se podem descrever em relação às correspondentes concepções mantidas pelos seus representantes sobre o problema do devir. Os pitagóricos fizeram o que convinha, mas pensaram encontrar o princípio do devir e do múltiplo numa realidade ideal: as relações matemáticas. Heráclito fez do próprio devir o princípio da realidade. Note-se, contudo, que o devir, em Heráclito, embora seja puro fluir, está submetido a uma lei: a lei da medida, que regula o incessante iluminar-se e extinguir-se dos mundos. Parmênides e os eleatas adotaram, a esse respeito, uma posição oposta à de Heráclito. Dado que a razão não apreende o devir, declaram que a realidade que devém é pura aparência; o ser verdadeiro é imóvel: perante o “tudo flui” de Heráclito, proclamaram o “tudo permanece”. Enquanto Empédocles entendeu o devir num sentido qualitativo (devir é mudar qualidades), Demócrito entendeu-o num sentido qualitativo (devir é deslocação de átomos em si mesmos invariáveis, sobre um fundo de não ser, ou extensão indeterminada). Note-se, a este respeito, que esta diferença entre o qualitativo e o quantitativo no devir se tornou fundamental na filosofia. A tendência geral de Platão consiste em fazer do devir uma propriedade das coisas enquanto reflexos ou cópias das ideias. A essas coisas se chama precisamente, por vezes, o engendrado ou o devido. Deste ponto de vista, pode dizer-se que na filosofia de Platão só o ser e a imobilidade do ser (ou das ideias) é “verdadeiramente real”, enquanto o devir pertence ao mundo do participado. Considerada a questão do ângulo do conhecimento, pode dizer-se que o ser imóvel é objeto do saber, enquanto o ser que devém é objeto da opinião. Contudo, seria um erro simplificar demasiado o pensamento platônico, já que o tratamento do problema, em diversos diálogos, deu lugar a interpretações muito variadas. Aristóteles criticou, antes de mais, as concepções sobre o devir propostas por filósofos anteriores. Essas concepções podem reduzir-se a quatro: 1) a solução eliática, que pretende dar conta do devir negando-o; 2) a solução pitagórica e platônica, que tende a separar os entes que se movem das realidades imóveis para depois – sem o conseguir deduzir os primeiros dos segundos; 3) a solução heraclitiana e sofística, que proclama que a realidade é devir, e 4) a solução pluralista, que reduz as diferentes formas do devir a uma só, quer qualitativa, (Empédocles), quer quantitativa (Demócrito). Os defeitos destas concepções são principalmente dois: a) o não notar que o devir é um fato que não pode ser negado ou reduzido a outros ou afirmado com substância(esquecendo neste caso que o devir é devir de uma substância), e b) o não reparar que devir como ser é um termo com várias significações. Estes defeitos procedem, em grande parte, de que os filósofos, embora não tenham perdido de vista que para que haja devir é preciso algum fator, condição ou elemento, não deram conta, em contrapartida, de que é preciso mais de um fator. Por isso, o problema do devir inclui a questão das diferentes espécies de causa. De fato, afirma Aristóteles, há tantos tipos de devir quantos os significados do vocábulo é. O devir é a) por acidente, b) relativamente a outra coisa e c) em sisi mesmo. Se considerarmos o último significado, podemos classificar o devir em três classes: o movimento qualitativo (alteração), o quantitativo (aumento e diminuição) e o movimento local. Pode perguntar-se agora se algum deles tem o primado sobre os outros. Por um lado, parece que o primado é do devir qualitativo, se prestarmos atenção ao sentido ontológico da mudança, evitando qualquer redução do mesmo à deslocação de partículas no espaço. A explicação do devir será então determinada pela célebre definição do movimento como atualização do possível. Por outro lado, pode-se considerar que o sentido primeiro do devir é a translação ou o movimento local.
Os escolásticos de tendências aristotélicas procuraram aperfeiçoar e esclarecer os anteriores conceitos. Assim, S. Tomás afirmava que a mudança é a atualização da potência, enquanto potência; por isso há devir quando uma causa eficiente leva a potência à atualidade, e outorga ao ser a sua perfeição entitativa. Acto e potência são igualmente necessários para que o devir tenha lugar, pelo menos o devir dos entes criados. Em contrapartida, em certas correntes da filosofia moderna, considerou-se o próprio devir, com o motor de todo o movimento e como a única explicação plausível de qualquer mudança.
Considerou-se que a ontologia tradicional – quer grega quer escolástica – era excessivamente estática. Vislumbres do novo dinamismo encontram-se em algumas filosofias renascentistas, mas a sua plena maturidade só se revelou dentro do pensamento romântico. Contudo, este manifestou-se de duas maneiras: ou como uma constante afirmação do primado do devir, ou como uma tentativa de racionalizar o devir de alguma maneira. Exemplo eminente desta última posição encontramo-lo em Hegel, para o qual o devir representa a superação do ser puro e do puro nada, os quais são, em última análise, idênticos. “A verdade – escreve Hegel – não é nem o ser nem o nada, mas o fato de que o ser se converta ou melhor, se tenha convertido em nada e vice-versa. mas a verdade também não é a sua indiscernibilidade, mas o fato de que não sejam a mesma coisa, sejam absolutamente distinto, mas ao mesmo tempo separados e separáveis, desaparecendo cada um no seu contrário. A sua verdade é, por conseguinte, este movimento do imediato desaparecer de um no outro: o devir é um movimento no qual ambos os termos são distintos, mas com uma espécie de diferença que, por sua vez, se dissolveu imediatamente” (A CIÊNCIA DA LÓGICA). Hegel frisa, além disso, que este devir “não é a unidade feita por abstração do ser e do nada, mas, como unidade do ser e do nada, é esta unidade determinada, isto é algo no qual se encontram tanto nada como ser”. [Ferrater]