kinoún: motor, agente, causa eficiente
1. O problema de um agente externo ou arche para o movimento não o é para os primeiros physikoi, dado que no seu ponto de vista vitalístico a kinesis era inerente às coisas (ver kinesis 1). Mas uma vez que Parmênides negara que a kinesis fosse um atributo do verdadeiro ser, o fenômeno óbvio do movimento no mundo físico tinha de ser explicado pelo recurso a um motor externo que daria, pelo menos, o ímpeto inicial para a kinesis.
2. A primeira tentativa neste sentido é o «Amor» e o «Ódio» de Empédocles (frg. 17, versos 19-20; confrontar Diels 31A28), extraída de uma analogia com as forças motoras que operam no homem (ibid., versos 22-24; confrontar Aristóteles, Metafísica 985a, que salienta o aspecto moral destas forças e as vê como uma manifestação do dualismo moral: ver kakon 3). Pouco depois há um afastamento, que faz época, da esfera moral para a intelectual: a fonte de movimento para Anaxágoras é a inteligência (noûs), que não é só a iniciadora do movimento mas também uma força orientadora (ver noûs 3; noesis 4). O delineamento do Deus de Aristóteles está já presente: noesis, kinesis, telos.
3. A primitiva preocupação de Platão com os eide imutáveis excluía ao que parece qualquer consideração séria da kinesis. Mas nos diálogos posteriores, particularmente no Sofista, Filebo, Timeu e Leis, há uma teoria completamente desenvolvida da kinesis (q. v. 6) com dois pontos-chave correlatos: a atribuição do princípio do automovimento à alma (ver psyche 19) e a admissão da kinesis, por ser uma função da alma, no domínio do «completamente real» (pantelos on; Soph. 248e-249b). Há, além disso, um eidos da kinesis (ibid. 254e) e, na verdade, ela é um dos megista gene (ver eidos 13).
4. O movimento, assim, ocorre a três níveis em Platão: como o eidos transcendental do movimento, como automovimento da alma, que tem uma posição intermediária entre os eide e os particulares sensíveis e que é a arche do movimento descrito nas Leis X, 895b; e finalmente como os vários tipos de movimentos secundários no kosmos descritos nas Leis X, 893b-894c.
5. Nos termos desta análise o proton kinoun de Platão ou Primeiro Motor é a parte noética do semi-transcendente ou Alma do Mundo (ver psyche tou pantos). Parece haver, além disso, razões para identificar o noûs do Filebo e do Timeu com esta mesma alma do mundo, se bem que seja misticamente descrito como criando a Alma do Mundo (ver noûs 6). Temos, pois, não apenas um kinoun mas também uma causa final e exemplar. O demiourgos é bom e faz com que o mundo seja tão semelhante a ele quanto possível (Timeu 29e-30a) e, segundo nos dizem, a alma humana é feita da mesma «substância» que a Alma do Mundo (ibid. 41d). Mas não só o kosmos é relacionado com o kinoun como o eikon com o paradeigma, movimento conhecido como «processão» (proodos) no platonismo tardio; há, também, uma «volta» (epistrophe). O resultado imediato do movimento automotor da Alma do Mundo é o movimento circular perfeito do seu próprio corpo, o universo visível (ibid. 34a, 36e; 40a-b). Este movimento regular, vísivel e eterno dos céus, fornece, por seu turno, um modelo pelo qual os homens deviam regular a harmonia nas suas próprias almas (ibid. 47b-c); a astronomia é, evidentemente, apenas um preliminar para mais altos impulsos da «volta» efetuada pelo eros e pela dialektike; ver ouranos 2).
6. Os mesmos passos do Timeu introduzem outra consideração: os corpos celestes são também «uma raça de Deuses». Cada um é dotado de inteligência e é esta que explica a rotação axial das estrelas, rotativas porque «cada um pensa sempre os mesmos pensamentos acerca das mesmas coisas» (ibid. 39e-40a; sobre este movimento rotativo confrontar Republica 436b e Leis X, 898a). Platão parece ter certas dúvidas sobre o modo de conexão entre estes corpos celestes e as suas inteligências condutoras. Fazem-se sugestões nas Leis X, 898e, mas Platão não tem a certeza se a sua alma é um motor imanente, como a nossa alma, ou uma força extrínseca que tanto pode ser corpórea (possivelmente a teoria de Eudóxio de que as estrelas são transportadas pela esfera corpórea em que estão integradas, teoria adotada por Aristóteles; ver 7, 11, infra) como incorpórea (o «objeto de amor» aristotélico?). Mas qualquer que seja o relacionamento exato, a tradição platônica conserva até ao fim a sua crença nestes motores planetários (ver ouranioi).
7. Entre as várias causas envolvidas na genesis Aristóteles especifica kinoun ou o agente que inicia a mudança (Physica u, 194b). O que entra aqui em causa são as noções de physis revistas por Aristóteles (q. v. 3). A physis desalojou a psyche de grande parte do terreno ocupado pela alma platônica e muito em especial da sua posição como fonte da finalidade (telos; Physica II, 194a) e do movimento (ibid. VIII, 250b-253a) e, dada a existência de coisas em movimento, deve haver uma única causa do movimento, um «primeiro motor» (proton kinoun) que é em si imóvel (ibid. 256a-258b): tudo o que é movido é movido por alguma coisa e não pode haver um retorno infinito de tais motores (ibid. 256a e vil, 242a-243a). Por isso há um Primeiro Motor eterno e um primeiro movido eterno, este último a esfera em que estão incorporadas as estrelas fixas (VIII, 260a-266a), movendo-se num movimento eterno e circular (movimento que é anterior a todas as outras formas de mudança, mesmo a genesis; ibid. 260a-b e ver genesis 15).
8. Mas Aristóteles, ao que parece, nem sempre defendeu este ponto de vista. A linha de raciocínio supracitada, extraída da Física, é fundamentalmente um argumento tirado da energeia/dynamis o qual assenta na premissa de que a passagem da potência ao ato requer a presença prévia de um agente já em ato que conduz, através da negação do infinito retorno, a uma energeia eterna que não pode ser diferente. Mas há também o «movimento platônico» em que a alma é a fonte do movimento. Deste modo Platão explicou a rotação axial das estrelas e foi nesta explicação em que Aristóteles se apoiou ao atribuir almas às estrelas no seu diálogo platonizante da primeira fase Sobre a Filosofia (frg. 24 = Cícero, De nat. deor. II, 44; aqui o movimento é chamado «voluntário»). Mas não podem os corpos celestes ser também movidos pela sua physis, que Aristóteles substituiu pela psyche como fonte interna do movimento? Esta parece ser a teoria sustentada no De coelo onde o movimento do «primeiro corpo», i. é, a esfera das estrelas fixas, é o movimento circular, eterno e «natural» do quinto elemento, aither (De coelo I, 268a-270b; ver stoicheion 17). As próprias estrelas fixas movem-se porque estão incorporadas nesta esfera (ibid. II, 298b-290b). Mas, embora seja capaz de dar esta explicação do movimento das estrelas em termos de physis da esfera, Aristóteles vê-se um pouco embaraçado quanto ao que há de fazer com o legado platônico das almas das estrelas (confrontar ibid. 11, 291 e 292a).
9. Este parecia ser um ponto de vista diferente do motor transcendente da Física (embora haja uma série de referências dúbias e/ou obscuras precisamente a este motor transcendente no De coelo, v. g. 279a-b). Mas é, não obstante, o kinoun da Física viu que é adotado e elaborado na Metafísica. No fim da primeira obra afirma-se que o proton kinoun não tem grandeza (megethos). Isto leva a uma dificuldade imediata dado que, no sistema aristotélico, toda a kinesis se efetua por contato (haphe; ver sympatheia 7). Para obviar a esta dificuldade, Aristóteles recorre a um princípio fornecido pela natureza. A percepção do bem dá origem ao apetite (orexis) desse bem, em seres racionais o objeto do desejo racional (boulesis; ver De anima III, 433a e proairesis), e na natureza irracional pela sua imitação do movimento dos corpos celestes expressa pela passagem constante dos elementos de um para outro (ver Metafísica 1050b; De gen. et corr. II, 337a; e genesis 15). Deste modo o proton kinoun é o bem de todo o universo «como objeto amado» (Metafísica 1072b), e o kosmos e todas as suas partes «movem-se para ele» pela mimesis da sua energeia traduzida em termos físicos: os corpos celestes pelas suas revoluções circulares perfeitas e os corpos corruptíveis pela sua genesis-phthora cíclica. A mimesis do homem é um tanto ou quanto mais directa. Ele é capaz da mesma espécie de energeia que o proton kinoun, i. é, noesis, mas realiza-o só intermitentemente porque ela implica uma passagem da potência ao ato e assim é fatigante (Metafísica 1050b, 1072b; ver noesis 21, noûs 10).
10. Dentro das categorias do ato e da potência o Primeiro Motor deve ser uma substância imaterial eternamente atualizada (Metafísica 1071b). O que é esta energeia? É neste ponto que todo o mundo platônico dos eide é afastado. Aristóteles já não necessita dos eide para explicar a predicação universal (ver katholou), e as qualidades estáticas destes não estão em consonância com a sua própria busca de uma arche do movimento (particularmente se ele pensa nos eide como números; ver Metafísica 992a e arithmos 3). O que resta, com efeito, é a Alma do Mundo de Platão dos Sofista – Filebo – Timeu: uma substância transcendente, um noûs vivo que dá movimento ao kosmos. E é precisamente nestes termos que é descrito o proton kinoun aristotélico: ousia aidios, noûs, zoe (Metafísica 1072b-1073a; para a carreira subsequente deste ilustre trio, ver trias). Há, evidentemente, correções. A Alma do Mundo platônica tem um Corpo do Mundo, o kosmos aisthetos; este seria a dynamis e a limitação no sistema aristotélico. A psyche de Platão implicara a kinesis; o noûs de Aristóteles desfruta da estranha «atividade da imobilidade» (energeia akinesias; Ethica Nichomacos VII, 1154b): a sua energeia é a noesis (ver noûs 9).
11. Mas o capítulo viu do Livro Lambda da Metafísica introduz uma nova dificuldade na cinética do sistema. Um motor imóvel fora postulado anteriormente para explicar o eterno movimento circular da esfera das estrelas fixas. Mas há outros movimentos eternos e circulares no kosmos e assim deveria haver tantos motores imóveis quantos os necessários para explicar os complicados movimentos das esferas, cujo número exato devia ser calculado pelos astrônomos (Metafísica 1073a-b; os números oferecidos por Aristóteles nos passos que se seguem são quarenta e sete e cinquenta e cinco). Também eles devem ser substâncias intelectuais que movem as esferas como causa final (ver Metafísica 1074a).
12. Qual é a relação destes motores imóveis com as esferas e com o proton kinoun do resto do argumento? Aristóteles não o explica em parte alguma. Fazer deles as almas das esferas era regressar ao «movimento platônico» de Sobre a Filosofia e tornar impossível a explicação de como estão sempre em ato; fazer deles forças imateriais externas ao corpo da esfera (teria neste caso a esfera adicionada uma alma imanente?) é levantar o problema da sua individuação. Se não estão unidos a um corpo como é que diferem uns dos outros uma vez que a matéria é o princípio da individuação (ver hyle 2 e confrontar diaphora 4 onde se diz que o gênero fornece uma «matéria inteligível» para as espécies)? De uma maneira geral aceitou-se que eles estão de certo modo subordinados ao proton kinoun descrito como governando todo o universo (Metafísica 1070b, 1072b, 1076a e ver 9 supra), e isto a despeito do fato de serem imóveis. Na verdade, o argumento em cuja base eles são postulados em primeiro lugar necessita que também eles sejam ousiai intelectuais perfeitamente atualizados, ideia que parecia eliminar o terem qualquer desejo (orexis), e consequentemente uma falta de realização, em relação ao proton kinoun.
13. Então, Aristóteles admite uma variedade de motores. Há o princípio imanente do movimento natural das coisas, physis. Há também, como princípio imanente, a psyche, não o modelo platônico que o próprio Aristóteles antes sustentara, mas o eidos imanente que move a substância à qual herda «por pensamento ou escolha» (ver psyche 20). Está presente em todas as coisas animadas mas não satisfaz (tal como a physis) o requisito geral da teoria da energeia/dynamis que exige uma causa externa e prévia do movimento. Por isso deve haver, pelo menos, um motor transcendente que é uma substância intelectual completa (sobre a «separação» do intelecto ver noûs). Quanto ao problema de haver mais do que um, pelo menos a certa altura da sua carreira, no Lambda viu da Metafísica (que não foi necessariamente escrito na mesma altura que o VII e o IX) Aristóteles sustentou que havia mais do que um, posição que continuou a seguir a tradição peripatética e provocou a refutação de Plotino (Eneadas V, 1, 9).
14. Depois de Aristóteles o problema de uma causa transcendente do movimento recua a pano de fundo. A função noética da causa cósmica permanece, tal como a pluralidade das inteligências intermediárias (ver noûs, daimon), mas a sua atividade causai é vista mais como fautora do que motora. As razões são duas. Há, em primeiro lugar, o conceito estoico de Deus, radicalmente diferente, que se torna imanente e operativo na matéria, muito à maneira da physis aristotélica (ver physis 3, logos 4 e pneuma 4). Em segundo lugar, há o renascimento geral do platonismo e, com ele, a restauração da imagem do demiourgos. Foi indubitavelmente sob a influência desta imagem que o objeto do pensamento divino, simplesmente noesis em Aristóteles, se transforma nos noeta como causas exemplares das coisas (ver noeton 2). [FEPeters]
kinoûn (tó): motor, o ser que move.
Latim: movens.
Esses quatro termos derivam do verbo kinô (= kineo): movo. Kinetón é o adjetivo verbal, kinoúmenon, o participio passivo, e kinoün, o participio ativo (neutro). A palavra kinesis tem como primeiro sentido movimento; com Platão, ganha o sentido metafísico de mudança; os dois sentidos depois passam a coexistir. Mas os tradutores, na esteira dos latinos, conservam o mesmo termo para os dois sentidos.
Diferentes espécies. Aristóteles esforçou-se por distinguir as diferentes espécies de movimento, mas se contradiz em diversos textos. Nas Categorias (XIV), onde dedica uma nota ao movimento, que toma então no sentido de mudança, enumera seis:
– corrupção: phthorá / phthora
– aumento: aúxesis / auxesis
– diminuição: phthísis / phthisis
– alteração: alloíosis / alloiosis
– mudança de local: phorá / phora
Em De anima (I, 3), são enumeradas apenas quatro espécies: o aumento e a diminuição foram eliminados. Por fim, em Física (V, 1-2), ele faz uma nova classificação em quatro categorias: substância, quantidade, qualidade e lugar; distingue então, por um lado, o movimento que afeta a substância (ousia), que é de ordem metafísica (geração e corrupção), que ele prefere chamar de mudança (metabole), e outras três, que são mais propriamente físicas:
– segundo a qualidade: alteração: alloiosis
– segundo a quantidade: aumento e diminuição
– segundo o lugar: translação: phora
Na verdade, é preciso reduzir o movimento a duas grandes formas: movimento propriamente dito, físico; e mudança, modificação metafísica.
– Sentido físico. a. mecânico: a ordem do mundo. Filolau distingue duas espécies de ser: os eternamente imutáveis e os eternamente mutáveis; estes estão submetidos ao princípio do movimento, que se efetua eternamente segundo uma revolução circular. Os primeiros são motores dos outros (Estobeu, Écl, XX, 2). Platão constata que não há móvel sem motor, nem motor sem móvel (Timeu, 57c), mas a terminologia que emprega é diferente da de Aristóteles e depois se tornará clássica; para ele, o móvel é kinesómenon e o motor é kinêson. Aristóteles, na Física, demora-se nos problemas do movimento. No livro III, apresenta uma definição: “O movimento é a passagem ao ato (entelekheia) daquilo que está em estado de potência (dynamis)” (III, 1, 201a); de outro modo, ele é “o ato do motor sobre um móvel” (ibid., III, 2-3). No livro VIII, ele se dedica à análise do movimento e neles identifica cinco elementos: o que move na origem, o primeiro motor (tò kinoün prôton); o móvel (kinoúmenon), o tempo no qual se realiza o movimento; o termo inicial (o “a partir do quê”: ex hoû) e o termo final (“aquilo em direção a quê”: eis hó) (V, 1). Epicuro emprega muito a palavra kínesis, especialmente para tentar explicar os movimentos da terra e dos outros astros (D.L., X, 106,111,113, 115…). Plotino dedicou um tratado ao Movimento circular (II, II), que é ao mesmo tempo o movimento das realidades sensíveis e o movimento da alma que as anima.
b. biológico. Em De anima (III, 9-10), Aristóteles analisa a faculdade motora, especialmente a ação da alma sensitiva sobre o movimento do corpo.
– Sentido metafísico. Parece que é esse o sentido que Pitágoras dava a kínesis, quando a definia como “diferença ou dessemelhança na matéria enquanto matéria” (Aécio, I, XXIII, 1); aliás, ele arrolava o movimento na categoria do inacabado (apeiron), portanto da imperfeição, ao contrário do repouso, que pertence à do acabado ou perfeito (Aristóteles, Met., I, 5). Platão retoma esses dois princípios no Sofista (254b-255b), para fazer deles dois dos cinco “gêneros supremos” que permitiam afirmar que há um não-ser (de alteridade) que se opõe ao Ser. Ele afirma a imortalidade da alma, mostrando que ela é automotora (autokíneton). Aristóteles, na Metafísica, volta à análise do movimento. Retoma a definição do movimento como atualização da potência (K, 9) e prefere, em seguida, para falar dos movimentos realizados nos corpos, empregar o termo metabolé (K, 11).
– Existência do movimento. Sexto Empírico resume as doutrinas em algumas palavras: o vulgo e alguns filósofos afirmam essa existência. Parmênides, Melisso e alguns outros o negam. Os céticos afirmam que nenhuma dessas posições é mais verdadeira do que a outra (Hipot., III, X, 65). [Gobry]