Filosofia – Pensadores e Obras

juros

Mas eis que Aristóteles, chegando ao fim do capítulo da Política dedicado à crematística, introduz um novo elemento na análise. Leiamos:

“O que se detesta, com mais razão, é a prática do empréstimo a juros, porque o que se possui provém da própria moeda e não responde mais à finalidade que presidira à sua criação. Pois a moeda foi inventada em função da troca, ao passo que os juros produzem apenas mais moeda. Daí serem chamados de interesse (tokos: nascido, engendrado), pois os seres engendrados (ta tiktomena) assemelham-se a seus pais, e os juros são uma moeda nascida da moeda. Consequentemente, de todas as maneiras de se ganhar dinheiro, esta é a mais antinatural”.1

Assim, tokos, o interesse, cuja raiz tek- evoca a denominação do filho pelo nome do pai, aparta-se da ordem da phusis e da reprodução natural para tornar-se o símbolo de uma filiação monstruosa. Se a moeda não engendra os juros mas, de certa forma, origina-se deles, isto não significa inverter a Justa Relação das Gerações? Não é o filho que dá à luz o seu Procriador? O dinheiro não seria mais apenas, como acreditava Shakespeare, agente de divórcio entre filho e pai (fator de dissolução), e sim, mais originariamente, fator de inversão da filiação. E os juros surgem, então, como o operador dessa filiação antinatural que desvia a moeda de sua origemeconômica” e que estabelece, a pretexto de uma troca adiada, uma dívida que assume a forma de uma criação monetária — na qual o dinheiro engendra dinheiro. Neste sentido, os juros resumiriam a troca crematística pelo fato de darem, por força (biaios), 2 a iniciativa ao dinheiro. E o capital criador de lucro seria tão somente a forma derivada do capital produtor de juros. . . Enfim, a técnica crematística obedeceria ao que chamamos técnica bancária.

Ideia estranha e difícil de ser apreendida, previne A. Berthoud, já que é preciso acrescentar imediatamente que os juros não seriam mais perceptíveis apenas no momento do empréstimo: eles estariam intimamente ligados a qualquer utilização da moeda desvinculada de sua função normativa de meio-termo (meson), compreendida como simples expressão monetária da equivalência. Tokos seria o nome aqui atribuído ao dispositivo de transformação da troca em atividade de produção “científica”, cujos efeitos a Política nos ensinou a avaliar: extraindo a moeda de sua condição política de mediação, ela mobiliza e desapropria a riqueza, monetariza e dissolve a propriedade antiga, perfaz a metamorfose dos bens em mercadorias; converte, enfim, a reciprocidade em dívida mútua. Os juros nada mais são do que o número do movimento de crescimento (monetário) de acordo com esse desejo de dinheiro que liga os indivíduos entre si, na radical injustiça de uma dívida que nada pode saldar. Sendo cifra do desejo, eles impõem “essa relação às coisas que chamamos, subjetivamente, nosso desejo, e, objetivamente, valor de tais coisas”. 3 Número do simulacro que opera num mundo de exigências simultaneamente impessoais e interpessoais. “O crescimento”, escreve A. Berthoud, “é apenas o efeito de um jogo [55] entre o desejo e o dinheiro”, e os juros, “o produto de uma medida aplicada à moeda pelo desejo de dinheiro”.4 Efeito de uma desmedida que estabelece a desigualdade em função de uma cesura segundo a qual a permanência da moeda não mais coincide com a presença social da necessidade, com a imanência da finalidade de cada ato de troca, mas sim com a différance de um poder (e não de um consumo) que precisa ignorar o “tempo concreto” da presença para drenar o excesso constituído em cada sequência de troca crematística. (Alliez, EATC:52-54)

  1. Aristóteles, Pol., I, 11, 1258 b 2 e s., trad. Tricot, modificada (cit. por Marx. Oeuvres. Pléiade, I, p. 782: O Capital, I, II, cap. 5).[]
  2. Ética a Nicômaco, I, 1096 a 6: ho de khrèmatistês biaios tis estin.[]
  3. G. Simmel, Philosophie de l’argent, trad. fr.. PUF, 1987, p. 44.[]
  4. A. Berthoud, Aristote et l’argent, Maspero, 1981, p. 177.[]