Filosofia – Pensadores e Obras

inaptidão

gr. κακόν (kakon): inaptidão, mal

No livro X da República [A partir de 608d13], Platão procura focar a lógica desta estrutura que temos estado a tematizar. Esta passagem procura mostrar que há uma unidade de sentido relativamente à qual se podem experimentar três desenvolvimentos possíveis para cada ente em geral. Torna visível o modo como é possível uma provocação do fenômeno da excelência (ἀρετή [arete]) em geral e da excelência (ἀρετή) do humano em particular, enquanto análise da lucidez humana (ψυχή [psyche] ). É a identificação da estrutura aptidão-inaptidão (ἀγαθόν-κακόν [agathon-kakon]) [Karen Alt, «Die Dichter und das Böse», WS, 1994, pp. 109-157. Para uma abordagem do problema do κακόν nos poetas. Cf. também Dorothea Frede, «The final Proof of the Immortality of the Soul in Plato’s Phaedo 102a-107b», Phron., XXIII, 1978, pp. 27-42, onde se foca uma aparente contradição no argumento da lei dos opostos (p. 38).] no horizonte da lucidez humana (ψυχή) o que nos dá a preocupação fundamental.

A análise parte da verificação do facto de haver qualquer coisa a que chamamos o bem e qualquer coisa a que chamamos o mal [Rep., 608d13]. São qualquer coisa [Ibid]. Este nível elementar em que registamos a ocorrência e a presença maciça de qualquer coisa permite, no entanto, ter em conta [Rep., 608e1] a característica que especifica (εἶδος [eidos]) o bem e o mal, isto é, que, a respeito deles [Ibid], sabemos como «todo o mal é devastador [40] e destrutivo, ao passo que o bem conserva e é vantajoso» [Rep., 608e3]. Importa, nessa conformidade, procurar ver de que forma se chega a diversas concretizações deste sentido, quando tomamos em consideração diversos entes, procedendo, como até aqui, no esforço de obtenção da base fenomenal que nos permita um olhar claro sobre estes fenômenos.

Cada ente na sua individualidade experimenta um mal e um bem específicos [Rep., 608e6], isto é, cada ente tanto pode ser impedido de realizar as suas potencialidades como pode vir a transformar-se maximamente naquilo que pode ser, ao cumpri-las, podendo ainda manter-se na modalidade de indiferenciação relativamente àqueles limites. Há sempre uma e a mesma forma eidética que se manifesta da mesma maneira, tanto na forma como constitui impedimento ao desenvolvimento das potencialidades do ente determinado que é, quanto como motor desse mesmo desenvolvimento. A forma (εἶδος) do impedimento e do desenvolvimento das capacidades subjaz a cada ente específico [Ibid]. De acordo, portanto, com o que cada ente é em sisi mesmo na sua essência, assim também lhe assistem formas específicas de formação e desenvolvimento ou de deformação e destruição.

Esta passagem da República é de importância decisiva para a compreensão do modo como Platão nos confronta com diversas formas de manifestação da estrutura eidética da excelência (ἀρετή), ou mais concretamente dos conceitos-limite bem-mal (ἀγαθόν-κακόν). Esse confronto parte das diversas manifestações do mal (κακόν). É como se apenas a partir das mais diversas manifestações de deformação e de privação (στέρησις) se desse o único modo de relevarmos e convocarmos a possibilidade da excelência (ἀρετή) e, assim, o seu acontecimento de uma forma positiva [Este texto procura mostrar de que forma a determinação da «Gerechtigkeit» passa fundamentalmente por uma determinação dos eide da κακία na República (445c), (p. 5). A «Ungerechtigkeit» enquanto oposta à «Gerechtigkeit» «erscheint ais eine Idee» (p. 13), e a «Extremform der Ungerechtigkeit ais Degenerationsprodukt» tem que ser inferida a partir da «Gerechtigkeit» (p. 13). Die Ungerechtigkeit ist «eines» (476a) hat dabei aber unzählige Arten» (445c) (p. 66). Ou seja, o logos aponta para a possibilidade de se verificarem a priori duas possibilidades de desenvolvimento e uma delas faz reluzir a outra.]. A excelência (ἀρετή) é analisada a partir do confronto com aquilo que de alguma forma a impede de se manifestar, como se a partir do seu cancelamento houvesse uma indicação para o que ela pode ser e para a possibilidade que pode [41] dar. Um cancelamento que não corresponde de modo algum à subtração da possibilidade de registarmos uma determinada presença no horizonte, mas que antes se revela como uma presença compungente. O que não está disponível não deixa por isso de se manifestar.

A «conjuntivite», a «doença», o «míldio», o «caruncho» e a «ferrugem» são manifestações de males específicos que nem por isso deixam de ser eficazes. Pela sua presença, não se vê, adoece-se, toda uma colheita de trigo é prejudicada, estraga-se uma mobília ou corrói-se o ferro. São fenômenos que estragam, danificam, fazem adoecer. Quer dizer, impedem determinados entes de se manterem na sua natureza, naquilo mesmo que são e podem ser. Cada forma de impedimento tem o seu campo de ação absoluta e claramente circunscrito. A conjuntivite e a doença não são males para cada coisa [Rep., 609e6], mas apenas para os olhos e para o corpo [Rep., 609a1]. O mesmo se passando com as restantes formas de mal a que se aludiu. O míldio ataca o trigo, o caruncho as madeiras, a ferrugem o cobre e o ferro. Nenhuma destas formas de mal ataca outros entes fora do seu campo específico de ação.

«Há para quase todos um mal congênere e uma doença.» [Rep., 609a3] Quer dizer, um mal é sempre um mal congênere (σύμφυτον κακόν) que só pode constituir e afetar como forma de impedimento a qualidade de ser não de qualquer coisa mas de um ente específico. Há uma ligação fundamental entre cada ente e o seu mal congênere, de tal sorte que não é todo e qualquer mal em geral que pode afetar os entes em geral. Ele só exerce o seu poder destrutivo e devastador sobre o ente relativamente ao qual é congênere. Só o mal congênere (τò σύμφυτον κακόν) é a forma de ruindade (πονηρία) capaz de desapropriar cada ente das suas propriedades [Se isto não devastar, nada mais há ainda que possa destruir para além disto (Rep., 609a10). Não é ο ἀγαθόν nem aquilo que é neutro que pode destruir qualquer coisa (Rep., 609b1).]. Quando uma destas formas de mal [Rep., 609a6] se abate [Ibid], então traz dificuldades [Ibid], acabando, no fim, por dissolver e devastar completamente [Rep., 609a7] o ente em que se implanta.

Apesar da circunscrição de um mal ao seu campo específico de ação, o qual é impermeável de ente para ente, subsiste a [42] possibilidade de se dar um alargamento no campo de ação de um determinado mal. Suponhamos o mal que afecta o trigo, o míldio ou a velhice e o apodrecimento. Esses males, em si, não podem afetar o corpo, deixando-o em más condições [Rep., 609e4]; no entanto, o mau estado específico do trigo pode provocar o mau estado que afecta em exclusivo o corpo [Rep., 609e]. O trigo estragado provoca o mal que é próprio do corpo, a doença. Ou seja, o corpo pode ser destruído por alimentos impróprios para consumo [lbid], na medida em que eles causam doença (νόσος). Mas não é por isso, por exemplo, que dizemos que o corpo sofre de míldio. Tudo apenas pode ser destruído pela sua perversão específica [lbid. Tudo é destruído segundo a sua forma própria de perversão. Quer dizer, um mal alheio não pode destruir ou afetar um determinado ente (Rep., 610a3).]. [CaeiroArete:40-43]