Filosofia – Pensadores e Obras

sociedade moderna

A fim de medirmos a extensão da vitória da sociedade na era moderna, sua inicial substituição da ação pelo comportamento e sua posterior substituição do governo pessoal pela burocracia, que é o governo de ninguém, pode convir também lembrar que sua ciência inicial, a economia, que altera padrões de comportamento somente nesse campo bastante limitado da atividade humana, foi finalmente sucedida pela pretensão oniabrangente das ciências sociais, que, como “ciências do comportamento” visam a reduzir o homem como um todo, em todas as suas atividades, ao nível de um animal comportado e condicionado. Se a economia é a ciência da sociedade em suas primeiras fases, quando suas regras de comportamento podiam ser impostas somente a determinados setores da população e a uma parcela de suas atividades, o surgimento das “ciências do comportamento” indica claramente o estágio final desse desdobramento, quando a sociedade de massas já devorou todas as camadas da nação e o “comportamento social” converteu-se em modelo de todas as áreas da vida.

Desde o advento da sociedade, desde a admissão das atividades domésticas e da administração do lar no domínio público, uma das principais características do novo domínio tem sido uma irresistível tendência a crescer, a devorar os domínios mais antigos do político e do privado, bem como a esfera da intimidade, instituída mais recentemente. Esse constante crescimento, cuja aceleração não menos constante podemos observar no decorrer de pelo menos três séculos, deriva sua força do fato de que, por meio da sociedade, o próprio processo da vida foi, de uma forma ou de outra, canalizado para o domínio público. O domínio privado do lar era a esfera na qual as necessidades da vida, da sobrevivência individual e da continuidade da espécie eram atendidas e garantidas. Uma das características da privatividade, antes da descoberta do íntimo, era que o homem existia nessa esfera não como um ser verdadeiramente humano, mas somente como exemplar da espécie animal humana. Residia aí, precisamente, a razão última do vasto desprezo nutrido por ela na Antiguidade. O surgimento da sociedade mudou a avaliação de toda essa esfera, mas não chegou a transformar-lhe a natureza. O caráter monolítico de todo tipo de sociedade, o seu conformismo, que só admite um único interesse e uma única opinião, tem suas raízes basicamente na unicidade da espécie humana. E, como essa unicidade da espécie humana não é fantasia e nem mesmo simples hipótese científica, como o é a “ficção comunista” da economia clássica, a sociedade de massas, onde o homem como animal social reina supremo e onde aparentemente a sobrevivência da espécie poderia ser garantida em escala mundial, pode ao mesmo tempo ameaçar de extinção a humanidade.

A indicação talvez mais clara de que a sociedade constitui a organização pública do processo vital encontra-se no fato de que, em um tempo relativamente curto, o novo domínio social transformou todas as comunidades modernas em sociedades de trabalhadores e empregados; em outras palavras, essas comunidades concentraram-se imediatamente em torno da única atividade necessária para manter a vida. (Naturalmente, para que se tenha uma sociedade de trabalhadores não é necessário que cada um dos seus membros seja realmente um trabalhador [laborer] ou um operário [worker] – e nem mesmo a emancipação da classe operária [working class] e a enorme força potencial que o governo da maioria lhe atribui são decisivas nesse particular –, basta que todos os seus membros considerem tudo o que fazem primordialmente como modo de sustentar suas próprias vidas e as de suas famílias.) A sociedade é a forma na qual o fato da dependência mútua em prol da vida, e de nada mais, adquire importância pública, e na qual se permite que as atividades relacionadas com a mera sobrevivência apareçam em público. [ArendtCH, 6]