Filosofia – Pensadores e Obras

simbólico

Examinemos a questão noutra perspectiva. Uma das portas de acesso ao mundo mítico é a reflexão sobre o simbólico. Se há uma realidade simbólica — aquela, cuja expressão mais adequada é o mito — é ela constituída por entes fluidos e translúcidos; de tal maneira fluidos, que indistinto se torna o limite entre o ser humano [190] e o ser divino, entre o ser divino e o ser natural, entre o ser natural e o ser humano; e de tal maneira translúcidos, que através do ser homem transparece o ser animal ou o ser planta, o ser rio, mar ou montanha; ou o através do ser deus transparece o ser humano ou o ser natural. Perca o simbólico a sua fluidez e a sua transparência, que sucederá? Tudo se cousifica! E a coisa, que nos mostra a sua face de terra, oculta seus veios de sangue ou de seiva, o corpóreo oculta o anímico ou o anímico oculta o corpóreo, o homem esconde o divino ou o divino esconde o humano. Quando o símbolo se cousifica, ou quando por diabólica inspiração ou sugestão, nós cousificarmos o simbólico, a metamorfose já não é possível, e o poeta virá então falar-nos de um «Último Sortilégio» e cantar-nos, tangendo a lira da consciência infeliz, estes versos de desânimo e de renúncia:

Outrora meu condão fadava as sarças
E a minha evocação do solo erguia
Presenças concentradas das que esparsas
Dormem nas formas naturais das coisas.
Outrora a minha voz acontecia.
Fadas e Elfos, se eu chamasse, via,
E as folhas da floresta eram lustrosas.

[Eudoro de Sousa. Horizonte e Complementaridade. Sempre o mesmo acerca do mesmo. Lisboa, INCM, 2002, p. 190-191]

20. Tentado estaria a dizer, sem erro claro, evidente e clamoroso, que o «diabólico» e o «simbólico» correm em sentidos contrários: «coisas» são símbolos desintegrados; como «símbolos» são coisas reintegradas. Problema é o de saber como se vive num mundo de símbolos, pois, ao que parece, só nos ensinaram a viver num mundo de coisas. E se desta última vida, nossos mestres são os da educação, quanto à primeira, não sabemos, ou só muito vagamente pressentimos, a quais havemos de recorrer. Já é bom começo reconhecer que à fragmentada «coisa-Homem» se coordenam multidões de «coisas-Mundo», e que estas mais nos possuem do que nós as possuímos a elas. Poder pelo poder, saber pelo poder, ou poder pelo saber, é a grande tentação diabólica. De que consistirá o que em nós ainda é propensão para o simbólico? E como, quando e onde se revela, em nosso convívio com as «coisas», ou antes, como entre «coisas» não há possível convívio, em nossas relações, todas exteriores, com as «coisas», o que se possa chamar de «propensão para o simbólico»? Grande é a tentação de falar do simbólico, invertendo ou virando do avesso o que acima dissemos do diabólico, já que, um e outro, correm em sentidos contrários. Mas resistamos a ela, o quanto possível. Deste modo, tudo se reduziria ao magro esquema de duas flechas paralelas e sobrepostas, disparadas simultaneamente contra alvos situados nos extremos do mesmo segmento de reta. É demasiado muito e demasiado pouco. Aliás, não é assim que, por exemplo flagrante, a morte se opõe à vida, pois nem sequer à vida a morte se opõe; não se opõem, as duas, de modo nenhum; o que, na verdade, sucede é que a morte está na vida, é momento da vida, da vida [108] que, sem a morte, não existe. E, decerto, vida e morte são duas partes de um símbolo, de um símbolo que, por falta de palavras que só designam coisas, indiferentemente se poderia chamar de Vida ou de Morte. Por ora, a diferença específica do simbólico, neste caso, fica assinalada só pela maiúscula. [EudoroMito:108-109]