Filosofia – Pensadores e Obras

formas da sensibilidade

Chega Kant à conclusão de que o espaço e o tempo são as formas da sensibilidade. E por sensibilidade entende Kant a faculdade de ter percepções.

Pois bem; o espaço é a forma da experiência ou percepções externas; o tempo é a forma das vivências ou percepções internas. Mas toda percepção externa tem duas faces: é externa por um dos seus lados, enquanto está constituída pelo que chamamos em psicologia um elemento “presentativo”; mas é interna por outro dos ‘seus lados, porque ao mesmo tempo que eu percebo a coisa sensível vou dentro de mim sabendo que a percebo; tendo não somente a percepção dela mas também a apercepção; dando-me conta de que a percebo. Assim, pois, é ao mesmo tempo um sair de mim para a coisa real fora de mim, e um estar em mim em cujo “mim” mesmo acontece esta vivência.

Por conseguinte o tempo tem uma posição privilegiada, porque o tempo é forma da sensibilidade externa e interna, enquanto que o espaço somente é forma da sensibilidade externa. Esta posição privilegiada do tempo, que abrange no seu seio a totalidade das vivências, tanto na sua referência a objetos exteriores como na sua referência a acontecimentos interiores, é a base e fundamento da compenetração que existe entre a geometria e a aritmética. A geometria e a aritmética não são duas ciências paralelas, separadas por esse espaço que separa as paralelas, mas antes duas ciências que se compenetram mutuamente. E foi precisamente Descartes o primeiro matemático que abriu a passagem entre a geometria e a aritmética, ou melhor dito, entre a geometria e a álgebra, porque Descartes inventou a geometria analítica, que é a possibilidade de reduzir as figuras à equações ou a possibilidade inversa de tornar figura uma equação. Mais adiante Leibniz completa, por assim dizer, esta coerência ou compenetração íntima da geometria com a aritmética e com a álgebra no cálculo infinitesimal. Porque então encontra não somente, como Descartes, a possibilidade de passar, mediante leis unívocas, das equações às figuras e das figuras às equações, mas também a possibilidade de encontrar a lei de desenvolvimento de um ponto em quaisquer direções do espaço. Esta possibilidade de encerrar numa fórmula diferencial ou integral as diferentes posições sucessivas de um ponto qualquer segundo o percurso que ele fizer, é, pois, o remate perfeito da coerência entre a geometria e a aritmética.

Desta sorte, toda a matemática representa um sistema de leis a p rio ri, de leis independentes da experiência e que se impõem a toda percepção sensível. Toda percepção sensível que nós tivermos haverá de estar sujeita às leis da matemática, e essas leis da matemática não foram deduzidas, inferidas de nenhuma percepção sensível: tiramo-las da cabeça, direi usando uma forma vulgar de expressão. E, todavia, todas as percepções sensíveis, todos os objetos reais físicos na natureza e aqueles que acontecerem no futuro, eternamente, sempre haverão de estar sujeitos a essas leis matemáticas que nós tiramos de nossa cabeça. Como é isso possível? Já o acabamos de ouvir em todo o desenvolvimento do pensamento kantiano. Isto é possível porque o espaço e o tempo, base das matemáticas, não são coisas que nós conheçamos por experiência, mas antes formas de nossa faculdade de perceber coisas, e, portanto, são estruturas que nós, a priori, fora de toda a experiência, imprimimos sobre nossas sensações para torná-las objetos cognoscíveis.

As formas da sensibilidade, espaço e tempo, são pois, aquilo que o sujeito envia ao objeto para que o objeto se aposse dele, assimile-o, converta-se nele e logo possa ser conhecido. Então diremos que Kant emitiu sobre as coisas em si (que continuavam perseguindo os idealistas desde Descartes) uma definitiva sentença de exclusão. As coisas em si mesmas não existem, e se existem não podemos dizer nada delas, não podemos nem falar delas. Nós não podemos falar mais que de coisas não em si, mas extensas no espaço e sucessivas no tempo. Porém como o espaço e o tempo não são propriedades que pertençam às coisas “absolutamente”, mas formas da sensibilidade, condições para a perceptibilidade, que nós, os sujeitos, pomos nas coisas, resulta que nunca em nenhum momento terá sentido o falar de conhecer as coisasem si mesmas”. A única coisa que terá sentido será falar, não das coisas em si mesmas, mas recobertas das formas de espaço e tempo. E essas coisas recobertas das formas de espaço e tempo chama-as Kant “fenômenos”. Por isso diz Kant que não podemos conhecer coisas em si mesmas, mas fenômenos. E que são fenômenos? Pois os fenômenos são as coisas providas já dessas formas do espaço e do tempo que não lhes pertencem em si mesmas; porém lhes pertencem enquanto são objetos “para mim”, vistas sempre na correlação sujeito-objeto.

Toda esta parte da Crítica da razão pura que acabo de expor leva em Kant um nome esquisito: chama-se “estética transcendental”. Digo que o nome é esquisito não porque o seja em sisi mesmo (logo se verá que está justificado), mas sim porque a palavra “estética” tem hoje um sentido muito popular, muito espalhado, que é aquele que habitualmente se evoca ao ouvi-la. A palavra “estética” significa hoje, para todo o mundo, “teoria do belo”, “teoria da beleza”, ou, ao acaso, “teoria da arte e da beleza”. Advirta-se, porém, que a palavra “estética”, no sentido de teoria do belo, é moderna, muito moderna; é aproximadamente da mesma época que Kant. Kant toma-a em outro sentido muito diferente: toma-a no seu sentido etimológico. A palavra “estética” deriva-se de uma palavra grega que é aisthesis, que se pronuncia “estesis” e que é sensação; também significa percepção. Então, que significa estética? Estética significa teoria da percepção, teoria da faculdade de ter percepções, teoria da faculdade de ter percepções sensíveis e ainda teoria da sensibilidade como faculdade de ter percepções sensíveis. A palavra “transcendental” usa-a Kant no mesmo sentido já tantas vezes dito de condição para que algo seja objeto de conhecimento. [Morente]