Filosofia – Pensadores e Obras

aevum

Tornou-se corrente na Filosofia da Cultura estabelecer distinções radicais entre o Tempo histórico e o Tempo mítico, entre o Tempo cósmico e o Tempo humano [NOTA: Além da literatura alemã a este respeito, vide a obra monumental de J. Evola, Rivolta Contro il Mondo Moderno, Fratelli Bocca, 2.a ed., 1951.]. Em outra linha, a filosofia contemporânea, principalmente a partir de Kierkegaard, explicita o tempo do Cristianismo como um tempo essencialmente angustioso, porque um tempo em que nos salvamos e nos perdemos. A existência posta como drama é a existência posta pelo tempo cristão. O tempo cristão é dramático, por oposição ao tempo antigo, que é trágico. O tempo assume no Cristianismo um significado capital, porque no tempo se processa a Encarnação e a Redenção; o tempo é a duração tensa, porque nele reside a Liberdade e portanto a escolha suprema na ordem dos fins, a escolha entre o bem e o mal. Este é um tempo desconhecido do homem antigo. Os gregos, exatamente por fluírem no tempo trágico, que é o tempo divino, não punham diferenças essenciais entre a Eternidade e o Tempo, tanto que a palavra Aion não significa apenas Aeternitas, mas também Aevum. O Aion como significando Aevum e Aeternitas é completamente estranho ao tempo da salvação. A Eternidade não foi para o homem clássico o irremediável selado pela morte. Entre o tempo antigo e o tempo cristão medeia a diversidade essencial que separa o tempo universal e o tempo individual, o tempo supra-humano e o tempo humano, o tempo metafísico e o tempo como vivência. Em Plotino ainda, se prolonga esta visão antiga do Tempo. Força-se uma interpretação cristã do tempo em Plotino, tomando-o como duração individual, como biografia e drama interior. É uma interpretação artificial, porque o tempo em Plotino é o tempo dissociado da Alma e não o tempo da Encarnação e da Redenção. O tempo de Plotino era movimento, saída da imobilidade, quebra da unidade; era posto em referência com o Eterno, do qual fluía por degradação, e com esse logos spermatikos, que depois assumiu aspecto tão diferente nos platônicos cristãos. Os seres temporais saíam como de um germe imóvel, desenvolviam-se evoluindo, dividiam-se de sua unidade interna e perdiam sua força pelo seu progresso. Quanto mais distante da Unidade originária, mais pobre o ser, de sorte que os seres temporais pertencem à esfera das realidades mais ínfimas. O ser imerso no tempo está distante de si mesmo e de toda realidade verdadeira. O tempo se aproxima do nada; é a multiplicidade engendrada pela Alma; é alongamento progressivo cia vida da Alma, em que a Alma se multiplica de si mesma, se reproduz de si mesma, esvaindo-se em muitas vidas diferentes; se há tempos diferentes, é porque há vidas diferentes na Alma dissociada; o tempo é a diversidade das vidas da Alma, é multiplicação e perdição e perdição no caminho da matéria, que é o Mal absoluto. Mas a Eternidade é o repouso, a imobilidade, a unidade, a identidade, a infinitude; e por isso, como o Uno ignora o múltiplo, a Eternidade não conhece o tempo, já que o tempo é evolução, movimento e fuga. Ao contrário do Infinito, o qual é um Todo, o tempo é um progresso incessante para o Infinito, que se dá parte por parte; o tempo não é a Totalidade, que está toda presente a si mesma (e que por isso é Totalidade), mas um todo que vem parte por parte, que se desenrola, que está sempre vindo e sempre por vir.

Esta temporalidade de Plotino, como duração e como criação da Alma, que se perde na sua marcha para o múltiplo, é o desenvolvimento final do tempo grego, pode ser até um desvio da visão grega do tempo, mas não tem nada de comum com o tempo angustioso do Cristianismo. O tempo ainda é em Plotino um tempo supra-hurnano, que pende da tragédia divina. O drama dos indivíduos não é dos indivíduos, mas do Uno, que se fragmenta na Inteligência, da Inteligência, que se fragmenta na Alma, da Alma, que se aniquila na matéria. Como na tragédia grega, o indivíduo não é o protagonista do drama, mas a máscara que representa os papéis da tragédia. O tempo de Plotino não é premido pela angústia da salvação do indivíduo como tal. Não existe a perdição concreta, no sentido do inferno cristão (que também não se parece com o Hades antigo), porque a perdição é o nada. Não existe a salvação eterna, que se assimila ao Uno e não ao indivíduo. Salvar-se é deixar de ser indivíduo, porque o indivíduo se aproxima do mal, que é a matéria. A história não cumpre o desígnio divino, porque ela é o não-desígnio; não é a façanha da luta pela liberdade, como poderia pensar algum filósofo atual, mas o caminho do erro, uma não-realidade; a história é negativa, porque o tempo é a negação do Uno. O tempo é além disso ilusório, porque aparece ao fragmento individual, mas não tem realidade no Um. E como o indivíduo só tem de real o que não tem de fragmentado, ele só tem de real o que tem de Eterno e não o que tem de temporal. O mundo é o reino platônico da sombra e do mal; é caverna e escuridão, é ilusão dos sentidos, é multiplicação inútil. A nostalgia vem desta parcela de Eternidade que trazemos para o sepulcro do corpo. [NOTA: Na falta de outra, usamos impropriamente esta palavra indivíduo; impropriamente porque indivíduo significa indivisível, e em Plotino, o que chamamos indivíduo já é o dividido, o dissociado.]

Seria fácil encontrar em Santo Agostinho todos os elementos do plotinismo. Mas o tempo augustiniano tem um sentido inteiramente diverso. Santo Agostinho precisamente é um dos fundadores da consciência da subjetividade e do tempo angustioso, e nem por menos está tão vivo na filosofia contemporânea. No tempo angustioso, o Uno de Plotino se torna um Deus pessoal, um Deus Ativo que cria o mundo, inclusive a matéria; os quatro elementos são ainda indissolúveis em Santo Agostinho, mas são obra da criação. A matéria deixa de ser o mal, porque todos os seres são bons enquanto seres; o mal não é a matéria, mas a deficiência, a falta, a privação; o corpo já não é a sepultura da alma, e sim ao contrário, é o reflexo da beleza divina. O homem é ainda em Agostinho uma alma que se serve de um corpo. Mas o corpo deixa de ser o símbolo da morte, não só porque Deus criou o corpo, como ainda porque os corpos ressuscitarão no dia do Juízo. Está posta em Agostinho a premissa depois desenvolvida pela Escolástica de que o homem é unidade substancial de alma e corpo e de que portanto o corpo é parte essencial do homem. A dignificação da matéria, que saiu como um bem das mãos de Deus, a justificação do corpo e da condição humana, decaída pelo pecado, mas que conserva ainda os vestígios da felicidade perdida, todos estes elementos puderam ser chamados a expressão do otimismo cristão. Mas este otimismo (que não parece muito claro na Patrística grega) não só não evitou, como ainda sublinhou a angústia do tempo. A angústia cresce se eu sou, não só o meu espírito, mas também o meu corpo, do qual estou condenado a separar-me no desenlace da morte. A condição do morto, na Igreja, é a condição das almas separadas. Além disso, se o mundo foi criado do Nada, o mundo, enquanto mundo, está posto entre dois não-tempos ou entre dois nadas. Ou então, o mundo se resolve por fim no repouso eterno do Absoluto, como acontece em Máximo, o Confessor, e em Hegel. O mundo havia sido outra cousa para os antigos; era um ponto de referência estável, fora do tempo, enquanto princípio maternal co-eterno, e enquanto receptáculo do sagrado. Desde os pré-socráticos até Crisipo o Mundo teve a amplitude de uma conexão entre a Terra e o Céu, os Mortais e os Deuses [Esta visão do Mundo é retomada por Heidegger em seu ensaio Das Ding.]. Mas, a tese cristã tal como aparece em Santo Agostinho, é que o tempo foi criado com a matéria e o mundo; são sinônimos temporal e mundano; de maneira que o Cristianismo põe realmente a tese da angústia existencial (inclusive a angústia dos existencialistas que se dizem ateus), porque segundo o Cristianismo, estamos no mundo, não como num lugar, mas como num tempo, num processo, numa tensão; tal é em Heidegger o sentido do estar-no-mundo. O mundo deixou de ser no Cristianismo o ponto estável de referência; e por isso é que, na Idade Média, a palavra mundus, por oposição ao seu sentido antigo, se tornou sinônimo de sempre em movimento. Quer dizer que não havia compatibilidade entre o Cristianismo e o sentido antigo de Centrum, o sentido de Mundus, tal como este sentido aparece na Religião grega e romana e mais remotamente na Religião etrusca. O Mundus, com sua significação clássica, não podia subsistir, se o tempo já não era um desenrolar-se da tragédia dos deuses ou da Alma. Não há maior erro do que aplicar à cultura antiga as noções que se originaram do Cristianismo; o tempo arcaico, o tempo de Heráclito, não era tempo dramático, mas tempo catastrófico. O tempo se torna dramático quando se interioriza, quando se subjetiva e quando o indivíduo, portador do tempo, se vê como um contingente, posto na contingência universal do mundo. Ele se move no movente; ele é um abismo que se abisma. Porque o tempo cristão já não é um dissociar-se da Alma universal, mas um desenrolar-se do meu próprio drama. A Eternidade antiga não inquietava o homem, no sentido religioso do termo, tanto quanto não nos inquieta o tempo infinito que decorreu antes do nosso nascimento. O que nos inquieta é o tempo ou a Eternidade que vem depois da nossa morte; a morte é inquietante, porque nos espera no futuro, e o futuro cristão é o reino do possível: no futuro o cristão pode salvar-se; no futuro pode perder-se; mas, como disse tão bem Kierkegaard, no futuro o cristão só não pode desfazer-se de si mesmo. [Barbuy]