al. Geviert
Essa é a Nähe [proximidade do divino] a que se refere Heidegger e na qual as coisas “coisam” ou acontecem. Portanto as coisas não têm uma origem humana, não nascem da inventividade do sujeito individual ou coletivo, mas acontecem nessa Nähe. “Quando e como”, pergunta Heidegger, “surgem as coisas como coisas? Elas não surgem da operação dos homens nem da vigilância dos mortais”. É necessário superar a imanência do feito-pelo-homem e os conteúdos da consciência representativa para alcançar aquela “cooperação” primordial de onde emergem as coisas. As coisas são desveladas, segundo Heidegger, num “Jogo de reflexos”, Spiegel-Spiel, onde convergem a Terra, o Céu, os Deuses e os Mortais, como forças desocultantes primordiais. Essa cooperação projetiva dá nascimento ao mundo das coisas e em particular ao Cântaro. “Na dádiva do cântaro permanecem de forma diversa os mortais e os Divinos. Na dádiva do cântaro permanecem a Terra e o Céu, os Deuses e os Mortais. Esses Quatro, em interna conexão, entrelaçados em um único Quadrilátero que se antecipa a toda presença (a todo o manifestado). Na dádiva do cântaro demora-se a simplicidade dos Quatro. A dádiva do cântaro é um Ofertar na medida em que nela permanecem a Terra, o Céu, os Deuses e os Mortais”. Esses quatro fatores transumanos que se expressam no acontecer do cântaro, que “cooperam” em sua desocultação, não devem ser pensados como fatores isolados e existentes por si e que se unem em seguida. Ao contrário, esses quatro, unos em si mesmos, é que compõem aquele Quadrar, aquele acontecer em que as coisas “coisam”. A Terra, o Céu, os Deuses e os Mortais não são fatores fechados em si, ciumentos de seu ser, mas forças refletentes-reflexivas, cada uma refletindo-se nas demais e refletindo as demais. Entretanto, esse refletir as demais não consiste num copiar um modelo já dado, na representação de um estar-aí, desde que não existe qualquer estar-aí antes do jogo desfechante e iluminante dos Quatro. “O jogo dos reflexos, o Spiegel-Spiel ocorre iluminando-se os Quatro em si, segundo sua essência no Todo indivisível”. Esse Todo dos Quatro é um processo, um acontecer e não um Todo fixo, sendo o ocorrer do jogo de reflexos que põem a descoberto o Mundo. Os Quatro quadram e [149] o quadrar dos Quatro se manifesta como o Mundar do Mundo. Nas coisas se expressa e se traduz o quadrar dos Quatro, as coisas são o relevo e o ocorrer desse quadrar, as coisas “coisam” o Mundo, desde que o ocorrer do Mundo se confunde com o ocorrer do quadrar. O traço visível, tangível e exterior do jogo de reflexos são as “coisas” enquanto coisas. Elas documentam a ronda do quadrar e só no domínio, na Proximidade dessa ronda, podem ocorrer as coisas. Mas as coisas não são o cântaro, mas tudo o que compõe o universo sagrado do homem que vive in der Nähe, na proximidade. Esse homem é o destinatário de uma realidade que emerge da Vierung [Quadratura], do Quadrar. Vemos que esse jogo de reflexos, não tendo o caráter de espelhar um estar-aí, de um reproduzir um modelo prefixado, mas sim um sentido eminentemente criador e original, é um ocorrer essencialmente Poético. Vemos outrossim que as “medidas” supremas fluem de potências extra-humanas, de uma Unverborgenheit [des-ocultação],” de uma des-ocultação que advém ao homem ou se precipita como um arrebatamento sobre o homem. A dádiva do cântaro é o sinal de uma dádiva transcendental que desdobra a realidade intramundana, que determina prototipicamente a cena do Mundo. A morfogênese das coisas advém na proximidade da presença divina, ou melhor, é essa mesma presença. A uma origem antropológico-individualista da cultura, Heidegger, em consonância com outros pensadores atuais, antepõe uma origem transcendente e meta-humana, em função da qual o homem é um simples destinatário de possibilidades. [VFSTM:149-150]