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Safranski (Romantismo) – Fichte

sexta-feira 16 de setembro de 2022, por Cardoso de Castro

  

Fichte   radicaliza o conceito de liberdade de Kant  . Naquela versão da doutrina da ciência que ele apresenta pela primeira vez em lena e que lá faz escola, retira da frase de Kant — “que ‘eu penso’ tem de poder acompanhar todas as minhas ideias” — o conceito de um eu onipotente que experimenta o mundo como uma resistência preguiçosa ou como possível material de suas ações. Ele se apresenta como o apóstolo do eu vivo. Em Iena conta-se como manda que os estudantes na universidade olhem para a parede diante deles. “Caros senhores, pensem na parede”, dizia, “e então pensem em si próprios como diferentes dela” Lamentava-se jocosamente que os estudantes fossem em bandos para suas aulas para lá olhar desorientados para a parede, onde nada lhes ocorria, porque o seu próprio eu não lhes ocorria. Através da experiência com a parede, Fichte queria porém libertar a consciência usual da sua imobilidade e autocoisificação, pois, como costumava dizer, era mais fácil levar o homem a imaginar que ele era um pedaço de lava da lua do que um eu vivo.

Mas nem todos se sentavam desorientados diante da parede. O talento entusiasmado de Fichte como orador também animava a muitos. Não se havia ainda ouvido falar sobre a obra maravilhosa do próprio eu. Um encanto estranho emanava das suas explorações complicadas de um mundo desconhecido e todavia tão próximo. Fichte queria despertar, em seus ouvintes, o desejo de ser um eu. Mas não um eu conformado, pacato, passivo — um eu dinâmico, explorador do mundo, criador do mundo. Tudo era energia em Fichte; também as reflexões sutis com as quais o eu toma a si próprio e o explora delatam o espírito da conquista. Ele agarrou o eu fugidio como se cerca a presa durante a caça. Para onde o eu foge? Ele quer se misturar às coisas, quer ser como uma coisa, irresponsável do mesmo modo, do mesmo modo preso e dominado pelo que lhe é estranho. Fichte quer cortar-lhe esse caminho de fuga para a insignificância. O eu se apropria de si quando entende que não pode esconder-se no não eu — que chamamos usualmente de “objetividade”. O mundo do não eu pode ser tudo que desmente minha liberdade: uma natureza exterior entendida de modo mecânico e determinista; os desejos e instintos; essa natureza no próprio corpo, que não se consegue controlar; um sistema social de ausência da liberdade; uma religião, na qual um deus rege suas criaturas. Esses mundos do não eu existem; quem poderia duvidar disso? Mas Fichte duvida deles. Mais ainda, ele lhes rouba toda a credibilidade. Quer envolver seus ouvintes num complô sutil contra o correr do tempo e o estado em que as coisas estão.

Num primeiro momento, parece que ele está buscando apenas a solução de um problema filosófico imanente. A geração dos jovens idealistas — Fichte, Schelling  , Reinhold, Schulze — havia realizado a revolução do pensamento kantiana, mas a base do conhecimento no sujeito lhe pareceu ainda realizada de maneira precária. “A filosofia”, escreve o jovem Schelling em 6 de janeiro de 1795 a seu amigo Hegel, ainda não está no fim; Kant deu os resultados: as premissas ainda faltam.” Ainda falta, pois, uma iluminação do ponto mais alto da filosofia, do qual todas as premissas possam ser originadas. Isso poderia ser Deus, a natureza, ou — e essa é a resposta de Fichte — a estrutura da autoconsciência tornada transparente, o verdadeiro eu do conhecimento, da ação, da crença e da esperança. Mas Kant não havia realizado o necessário para isso com a descoberta das categorias da razão conhecedora — espaço, tempo, causalidade, etc. — e do imperativo moral da razão prática? Não tinha mostrado que não se podia tirar mais nada do autoconhecimento exatamente porque não se pode colocá-lo diante de si como um objeto puro? O eu que deve ser reconhecido é o eu que reconhece; ele é, portanto, sempre pressuposto. Desse círculo, explica Kant, não se sai. Fichte agora argumentava de forma diferente; não se pode mesmo sair desse círculo, mas se pode entrar nele de outro modo, sem que se acabe, como teme Kant, no eu como uma ideia completamente vazia, mas com o eu como princípio de tudo que vive. Este “eu” apareceu como algo tão vivo a descobrir que Novalis   — em maio de 1797, época em que peregrinava diariamente para Grüningen e o túmulo de sua amada Sophie —, quando teve a sensação de tê-lo encontrado, escreveu em seu diário: “Entre Schlagbaum e Grüningen tive a alegria de encontrar o conceito do eu de Fichte.” O que quer dizer a frase subordinada — “o dia todo eu estive muito ávido” — permanece nesse contexto um mistério.

Kant partira, ensina Fichte, do “eu penso” como algo dado; isso não se deveria fazer, mas sim observar o que acontece em nós quando pensamos “eu penso”. O eu é algo que instituímos apenas através do pensamento, e ao mesmo tempo a força que faz surgir as coisas é a identidade em nós mesmos, que fica além do pensamento. O eu pensante e o eu pensado movimentam-se realmente num círculo, mas tudo depende de se entender que para Fichte trata-se de um círculo ativo, produtivo. Não se trata de o eu só se fundamentar através da contemplação, mas de que ele se produza a si mesmo na reflexão, que por sua vez é uma atividade; ele se estabelece. Isso quer dizer que esse eu não é um fato, uma coisa, mas um acontecimento. O eu está em movimento, ele vive, nós o sentimos em nós. Em 1795, no começo dos seus estudos sobre Fichte, Novalis — naquela época, depois da sua formação como advogado, trabalhando como estagiário na administração distrital de Tennstedt — tenta resumir o caráter ativista do eu da seguinte maneira: “aquilo que é dado ao sentimento me parece ser a causa e o efeito da ação primária”. O sentimento é, portanto, um fenômeno que acompanha a ação. Novalis está no caminho certo, pois é fato que Fichte tenta evitar o mal-entendido de que se poderia agarrar a esse eu como a um objeto. Ele sempre insiste: tudo está em movimento e vive; nós o pensamos, mais ainda, nós o sentimos na nossa vida. O mundo começa com uma ação e com uma ação começa aquilo que chamamos de eu. Fichte diria: eu me crio como eu, por isso sou.

Tais considerações têm de soar monstruosas, se são entendidas como se negando o mundo exterior e afirmando um solipsismo absoluto. Mas isso não ocorre em Fichte. Ele apenas tira consequências radicais do princípio de que temos o mundo exterior inicialmente apenas como mundo interior; por exemplo, a consequência de que apenas no momento em que o eu toma posse de si é que o não eu aparece. Nesse sentido, a contradição é posta no mesmo momento em que o eu também se põe. Este só é perceptível em oposição ao não eu. Mas o não eu é portanto gerado pelo eu ou permanece em primeiro plano existindo do lado de fora? Obviamente que ele é “existente”, mas apenas no âmbito do eu, do qual jamais pode sair; portanto, o não eu é ele mesmo um aspecto desse eu. É uma limitação que o eu toma como autolimitação. Mas tal autolimitação pode — e aqui começa o problema — ser levada tão longe que acaba se escondendo parte do eu na limitação. Assim, a autolimitação torna-se autocoisificação. Ela dá um poder às coisas externas que elas não mais teriam, se o eu continuasse consciente de si. Para Fichte, tudo depende de se afiar os sentidos para a parte do eu, isso é, para a própria atividade criativa no mundo. O mundo não é algo que está diante de nós do lado de fora, ele não é um objeto estranho e completo; está impregnado pelo eu. O mundo exterior se mostra no âmbito do eu. Mas como?

Cada realidade que age sobre nós está incluída em possibilidades. Sensações no próprio corpo se nos impõem, mas mesmo em relação a elas temos liberdade de agir: podemos lidar com elas. Quanto mais sutis se tornam as percepções — até o ponto alto do pensamento e da fantasia —, mais intimamente elas estão ligadas a toda uma “gama” de possibilidades. Só podemos descobrir aquilo que é real quando, dentro das diversas possibilidades pensáveis, descobrimos a “adequada”. Não existe simplesmente o “necessário”; tem-se de descobri-lo a partir das possibilidades. É a liberdade que descobre aquilo que é necessário. Fichte chama de “verdadeiros” os pensamentos que estão acompanhados pelo “sentimento da necessidade”. Tal sentimento se impõe, mas não sem dar espaço para alternativas: sempre poderia ser de outro modo. A liberdade continua em jogo como um sentimento de possibilidades, também no que diz respeito aos duros fatos. Também quando reconhece, não apenas quando age, o homem é um ser que poderia não apenas agir de outro modo, mas também ver as coisas de outra maneira. Ele vive das possibilidades. A realidade se constitui num horizonte de possibilidades. Isso é liberdade.

Também esse é um pensamento que se deixa esclarecer com a ajuda de Novalis. Nosso conhecer, escreve ele, só é livre porque podemos nos enganar. Nós teríamos de não ser livres, se fôssemos levados de maneira compulsória às fontes do ser. Apenas porque não temos acesso ao absoluto, mas sempre o procuramos, “surge a atividade livre em nós.”

Fichte vê essa movimentação livre ligada ainda à experiência do tempo. Somos seres abertos ao tempo, lembramo-nos de um passado e esperamos um futuro. O futuro é o possível, para o qual olhamos, e o passado é aquilo que foi real, aquilo que, já que não mais o é, tornou-se novamente uma possibilidade que se deixa recordar e interpretar de maneira diferente.

Partindo do presente — se queremos compreendê-lo de acordo com suas causas originais e seus motivos — tudo que acontece é cercado por uma gama de possibilidades, a partir da qual temos de descobrir o rastro do que é necessário; e partindo do presente o futuro e o passado são também parte do grande espaço do possível.

A agilidade com a qual nos projetamos para esses espaços é denominada por Fichte como dom da imaginação. Kant havia utilizado esse conceito para determinar a energia inerente à percepção e ao reconhecimento. Em Fichte ele se tornará a chave de todo o sistema. E não se pensa aqui na imaginação no sentido da fantasia; pressupõe-se um dom de imaginação que funciona inconscientemente no eu antes que ele se torne consciente dela. Nota-se que aqui se trata de dois eus.

De fato, Fichte distingue o eu transcendental do eu empírico, e assim há também — ao lado de um dom de imaginação que posso colocar em ação segundo minha vontade, ainda outro, que age de modo involuntário e inconsciente. Essas duas dimensões não são porém separadas absolutamente uma da outra, mas interligadas por um contínuo de autoconsciência e um grau de autodeterminação crescentes. Tudo depende de aproximar o dom da imaginação consciente do inconsciente ou — o que resulta no mesmo — de ampliar o eu empírico em direção ao transcendental. Aqui há, segundo o autor, enormes possibilidades não aproveitadas. Evidentemente, há limites para a livre espontaneidade do eu; isso ele reconhece, mas não sem indicar que tendemos a considerar o espaço da autodeterminação menor do que realmente é. Há imposições, conscientes e inconscientes, mas nos sentimos às vezes por demais forçados onde não o somos. Isso talvez porque a liberdade seja também cansativa e por ser mais fácil se sentir como algo que é empurrado e teleguiado, sem responsabilidade, como coisa entre coisas, como simples reação e não como ação. Fichte foca sobre aquela lentidão que tolhe a própria liberdade. Para ele, ela é o que é verdadeiramente maléfico.

Se o mundo é tudo de que há uma experiência, então quer dizer que onde não há experiência, também não há mundo. Aí também não há a funesta “coisa em si” de Kant: é sem sentido acreditar numa substância que não se pode experimentar, mas que supostamente está na base de tudo, e pressupor uma casualidade entre aquilo que conhecemos e aquilo que desconhecemos. Só podemos constatar uma casualidade entre dois elementos conhecidos. Para Fichte vale que o sujeito, o eu ativo e reconhecedor, é a base. Não há nada que leve além do absolutismo desse eu, mas tudo leva para dentro dele.

Além do solipsismo há um segundo mal-entendido: quando esse eu pressuposto na experiência — o eu transcendental — é confundido com o que é entendido psicológica e coloquialmente — o eu empírico. Então deixa-se zombar mais facilmente a respeito. Também Schiller e Goethe   fazem suas piadas. Quando Fichte se envolve numa contenda com um grupo de estudantes e alguns deles lhe quebram as vidraças à noite, Goethe escreve ao seu colega, também ministro: “O senhor viu pois o eu absoluto em grandes apuros, e claro que foi muito descortês da parte dos não eus estabelecidos que eles voassem através das vidraças.” No dia 28 de outubro de 1794, dirigindo-se a Goethe, Schiller escreve sobre Fichte, que ele denominara há pouco, numa carta a Hoven de 21 de novembro de 1794, “a maior inteligência especulativa” desse século depois de Kant: “O mundo é para ele apenas uma bola que o eu jogou e que ele resgata na reflexão. Com isso ele teria realmente declarado sua divindade, como nós recentemente esperávamos.” Quando Fichte, em 1795, tem de fugir para Oßmannstedt por causa dos tumultos entre os estudantes, Schiller escreve em 15 de maio a Goethe: “ não sei contar nada de novo daqui, pois com o amigo Fichte a fonte mais rica de coisas absurdas se extinguiu”.

Fichte polarizava. A alguns encantava, outros se revoltavam contra ele; em ambos os partidos a vontade renovada de ser um eu estava em jogo. “Foi um tempo perigoso para jovens inteligentes”, lembra-se mais tarde um contemporâneo, “extremamente excitante e tensa [...] a vida se movimentava entre diversos extremos...” Responsabilizava-se a filosofia do eu de Fichte por todo extremismo. Pouco adiantava que este tivesse se protegido do mal-entendido; sua filosofia do eu justificaria falta de tato e egoísmo. O que era então a compreensão certa dela?

No tratado Depoimento claro ao grande público sobre a verdadeira essência da filosofia [Sonnenklarer Bericht an das größere Publikum über das eigentliche Wesen der Philosophie], com o subtítulo delator Uma tentativa de forçar os leitores a compreender [Ein Versuch, die Leser zum Verstehen zu zwingen], eie procura, de modo desesperado, provar que não quer dar voz ao egoísmo, mas deixar que o ser se expresse através do ego, com a teoria de que a dinâmica do processo vital da história e da natureza só seria compreensível pensando o todo a partir do eu. A força que movimenta a natureza e a história é do mesmo tipo que aquela que experimentamos no ativismo, na espontaneidade do nosso eu. Desenvolve-se aqui ousadamente o pensamento de Rousseau  , a respeito de que se sabe do começo do mundo porque qualquer um pode começar a qualquer momento. A experiência do próprio eu nos leva ao mundo como universo da espontaneidade. O “eu sou” é o segredo revelado do mundo. O mundo não é a súmula de todos os fatos, e sim de todos os acontecimentos. Mas aquilo que é um acontecimento se descobre pela movimentação produtiva do eu, na sua liberdade criativa. Por isso vale, como escreve Novalis, “ser nada mais é do que ser livre — levitar [...] Desse ponto luminoso da levitação irradia toda a realidade”. Esse entendimento foi para Fichte — e Novalis — aquele raio claro que aqueceu sua filosofia até o fim.


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