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Cassirer: A CRISE NO CONHECIMENTO DO HOMEM SOBRE SI MESMO

quarta-feira 23 de março de 2022, por Cardoso de Castro

Em virtude deste desenvolvimento, nossa moderna teoria do homem perdeu seu centro intelectual. Ganhamos, em seu lugar, uma completa anarquia de pensamento. Até nas épocas anteriores, evidentemente, havia grande discrepância de opiniões e teorias em relação ao problema. Mas subsistia, ao menos, uma orientação geral, um ponto de vista, a que se podiam referir todas as diferenças individuais. A metafísica, a teologia, a matemática e a biologia assumiram, sucessivamente, a orientação do pensamento sobre o problema do homem e lhe determinaram a linha de investigação. A verdadeira crise do problema se manifestou quando deixou de existir o poder central capaz de dirigir todos os esforços individuais. Percebia-se ainda a suma importância do problema em todos os diversos ramos do conhecimento e da investigação. Mas já não existia uma autoridade estabelecida, para a qual se pudesse apelar. Teólogos, cientistas, políticos, sociólogos, biologistas, psicólogos, etnólogos, economistas, todos abordavam o problema pelos seus pontos de vista. Era impossível combinar ou unificar os aspectos e perspectivas particulares. Nem mesmo dentro dos campos especiais havia um princípio científico geralmente aceito. O fator pessoal passou a prevalecer cada vez mais, e o temperamento do escritor começou a desempenhar um papel decisivo. Trahit sua quemque voluptas: cada autor parece, em última análise, movido pela própria concepção e valorização da vida humana.

Que este antagonismo de ideias não é apenas um grave problema teórico, mas uma ameaça iminente a toda a extensão de nossa vida ética e cultural, não padece dúvida. Em recente pensamento filosófico, Max Scheler   foi um dos primeiros a tomar consciência deste perigo e a chamar a atenção para ele. "Em nenhum outro período do conhecimento humano", declara Scheler,

o homem se tornou mais problemático para si mesmo do que em nossos dias. Dispomos de uma antropologia científica, uma antropologia filosófica e uma antropologia teológica que se ignoram entre si. Por conseguinte, já não possuímos nenhuma ideia clara e coerente do homem. A multiplicidade cada vez maior das ciências particulares, que se ocupam do estudo dos homens, antes confundiu e obscureceu do que elucidou nossa concepção do homem. (Max Scheler, Die Stellung des Menschen im Kosmos, Darmstadt, Reichl, 1928, pp. 13 e seguinte)

Tal é a estranha situação em que se encontra a filosofia moderna. Nenhuma outra idade se viu em posição tão favorável no que concerne às fontes do conhecimento da natureza humana. A psicologia, a etnografia, a antropologia e a história reuniram um cabedal de fatos surpreendentemente rico e de constante crescimento. Nossos instrumentos técnicos de observação e experimentação foram imensamente aperfeiçoados e nossas análises se tornaram mais apuradas e mais penetrantes. Apesar disto, não parece que tenhamos encontrado ainda um método para o domínio e a organização deste material. Cotejado com nossa própria abundância, o passado pode parecer paupérrimo. Entretanto, nossa riqueza de fatos não é necessariamente uma riqueza de pensamentos. A não ser que consigamos encontrar o fio de Ariadne que nos tire deste labirinto, não poderemos ter uma visão do caráter geral da cultura humana, e continuaremos perdidos no meio de um conjunto de dados desconexos e desintegrados, carente, ao que parece, de toda unidade conceitual.


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