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Cassirer: A CRISE NO CONHECIMENTO DO HOMEM SOBRE SI MESMO

quarta-feira 23 de março de 2022, por Cardoso de Castro

Mas era preciso dar outro passo, talvez o mais importante, antes que se pudesse desenvolver uma verdadeira filosofia antropológica. A teoria da evolução destruíra os limites arbitrários entre as diferentes formas de vida orgânica. Não há espécies separadas; há somente uma contínua e ininterrupta corrente de vida. Mas podemos aplicar o mesmo princípio à vida humana e à cultura humana? Será o mundo cultural, como o mundo orgânico, feito de mudanças acidentais? — Não possui ele uma estrutura teleológica definida e inegável? Com isto se apresentou um novo problema a todos os filósofos que faziam da teoria geral da evolução seu ponto de partida. Era-lhes preciso provar que o mundo cultural, o mundo da civilização humana, é reduzível a umas poucas causas gerais, que são as mesmas para os fenômenos físicos e para os chamados fenômenos espirituais. Tal foi o novo tipo de filosofia da cultura introduzido por Hippolyte Taine em sua Filosofia da Arte e em sua História da Literatura Inglesa. "Aqui, como em toda a parte", disse Taine,

temos apenas um problema mecânico; o efeito total é um resultado, que depende inteiramente da magnitude e da direção das causas produtoras... Posto que os meios de notação não são os mesmos nas ciências morais e nas ciências físicas, em ambas a matéria é idêntica, igualmente feita de forças, magnitudes e direções, e podemos dizer que em ambas o resultado final é produzido de acordo com o mesmo método. (Taine, Histoire de la littérature anglaise, Intro. Tradução inglesa de H. van Laun, Nova Iorque, Holt & Co., 1872, I, pp. 12 e seguintes)

É o mesmo anel de ferro da necessidade, envolvendo tanto nossa vida física quanto a cultural. Em seus sentimentos, inclinações, ideias, pensamentos e na produção de obras de arte, o homem jamais pode sair deste círculo mágico. Podemos considerá-lo como um animal de espécie superior, que produz filosofias e poemas como os bichos-da-seda produzem seus casulos ou as abelhas constroem seus alvéolos. No prefácio de sua grande obra, Les origines de la France contemporaine, declara Taine que vai estudar a transformação da França como resultado da Revolução Francesa tal qual faria com a "metamorfose de um inseto".

Surge aqui, porém, outra pergunta. Podemos contentar-nos em enumerar, de maneira meramente empírica, os diferentes impulsos que encontramos na natureza humana? Para termos deles uma visão realmente científica, teriam de ser classificados e sistematizados, e é óbvio que nem todos estão no mesmo nível. Precisamos supô-los dotados de uma estrutura definida — e uma das primeiras e mais importantes tarefas da nossa psicologia e da nossa teoria da cultura é descobrir essa estrutura. No complicado mecanismo da vida humana precisamos descobrir a força propulsora oculta, que põe em movimento todo o mecanismo de nosso pensamento e vontade. O objetivo principal de todas estas teorias era provar a unidade e a homogeneidade da natureza humana. Mas se examinarmos as explicações que elas pretendiam dar, a unidade da natureza humana se nos afigura extremamente duvidosa. Todo filósofo acredita haver encontrado a mola mestra e a faculdade principal — Vidée maîtresse, como lhe chamava Taine. Mas no que concerne ao caráter dessa faculdade principal todas as explicações diferem amplamente uma da outra e se contradizem. Cada pensador nos dá uma visão especial da natureza humana. Todos estes filósofos são empiristas decididos: querem mostrar fatos e nada mais que fatos. Mas sua interpretação da prova empírica contém, desde o princípio, uma suposição arbitrária — e essa arbitrariedade se torna mais e mais manifesta à proporção que a teoria se desenvolve e assume um aspecto mais requintado e complicado. Nietzsche   proclama a vontade do poder, Freud   assinala o instinto sexual, Marx   entroniza o instinto econômico. Cada teoria se transforma num leito de Procusto, onde se esticam os fatos empíricos para que se adaptem a um padrão preconcebido.


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