O si mesmo me chega, assim, como um dado, que eu recebo ao mesmo tempo que todos os outros dados. Este mesmo que se recebe ao mesmo tempo que isto que recebe pode ser chamado de dação 1. Deus dá lugar àquilo que ainda não pode receber, porque ainda não está aí, não tendo por si e para si nem aí, nem aqui, nem ser, nem si mesmo. Pois cabe ao primeiro dom, ao dom originário (e que merece esse título precisamente por isso), dar àquilo que ainda não pode receber, já que ainda precisa ser dado. Santo Agostinho descreve a dação com a maior precisão: «… priusquam essem, tu eras, nec eram, cui praestares ut essem. – … antes que eu existisse, tu já eras, e eu não era tal que a mim tu concedesses ser» (XIII, 1, 1, 14, 424); «… ut serviam tibi et colam te, ut de te mihi bene sit, a quo mihi est, cui bene sit. – … para que eu te sirva e te renda culto, de modo que me aconteça de ti estar bem, de ti de quem me vem ser aquele a quem acontece estar bem» (ibid., 426). Deus dá o primeiro dom, por definição, àquilo que ainda não existe, et non existentibus. Que Deus esteja comigo antes que eu esteja com ele («… qui mecum es et priusquam tecum sim…», X, 4, 6, 14, 150), isso transcende a questão da graça para concernir à do meu esse e do meu si mesmo, ainda que apenas porque tudo é graça. A questão do meu ser pertence ao dom, antes que a ontologia a fixe e congele em uma ilusão de permanência. «Deus autem nulli debet aliquid, quia omnia gratuito praestat. Et si quisnam dicet ab illo aliquid deberi meritis suis, certe ut esset, non ei debebatur. Non enim erat cui deberetur. – Deus, de fato, não deve nada a ninguém, porque dá todas as coisas gratuitamente. E, se por acaso alguém disser que algo é devido a seus méritos, ao menos é certo que não lhe era devido existir. Pois não havia [ainda] alguém a quem isso teria sido devido.» [vide] Eu me torno eu mesmo ao me receber originariamente de outro lugar – si mesmo não apenas por meio de um outro, mas vindo de um outro, si mesmo de outro lugar. No lugar de si mesmo encontra-se o outro lugar que si mesmo, do qual só, como um outro-si, mais si mesmo do que eu, o si mesmo pode se receber.
(MarionSoi)
- Voir Étant donné, § 26, op. cit., p. 361 sq. Voir supra, c. II, § 15, p. 139 sq.[↩]