Página inicial > Sophia Perennis > Watts Vibrações

Watts Vibrações

terça-feira 30 de abril de 2024

  

Alan Watts   — Tabu
Excertos da trad. de Olavo de Carvalho
SOBRE A SELEÇÃO DAS VIBRAÇÕES
Vocês se sentem enfim prontos a reconhecer que aquilo que desejam, e aquilo que recusam são um só e o mesmo processo? Que, mesmo quando é necessário um plano em perspectiva para poder reconhecer uma figura, o sentimento de sermos "nós mesmos" exige compreender que existe algo "mais", e exterior; e também que é impossível obter qualquer poder, qualquer sucesso, qualquer domínio, sem que a isso se oponham, num perpétuo contraste, o fracasso, a surpresa e a incerteza? E, pois, todos os nossos pretensiosos projetos para adquirir ascendência sobre os acontecimentos são apenas uma espécie de farsa que, se tomada a sério, leva à brutalidade e à violência — exprimindo assim o furor de não sermos capazes de resolver um problema que, desde o princípio, era absurdo?

Se a doutrina do pecado original tem uma significação, transmitida desde Adão e Eva, através das gerações, é que todas as crianças sofrem uma lavagem cerebral, ou são hipnotizadas, por seus pais e professores, pelos mais velhos e seus superiores, até crer que sobreviver é uma necessidade imperiosa. As reações e as atitudes dos adultos lhes ensinam que certas experiências de alta tensão, ou vibração, devem ser consideradas como "dolorosas" e "más", porque elas poderiam ser prelúdio desse evento monstruoso que é a morte, que se deve, a todo preço, evitar. Permitam-me citar dois exemplos desta lavagem cerebral básica, para ilustrar seu princípio essencial — ambos tendo lugar num nível terra-a-terra.

Sabe-se atualmente, que uma mulher que vai pôr no mundo uma criança não é mais obrigada a suportar "dores". Ela pode ser mentalmente reorientada de modo a sentir como tensão orgânica o que outrora era chamado de "dor". É possível para ela, assim, ficar tão excitada pela sensação do nascimento quanto o foi pela da concepção. Igualmente, os adultos têm o costume de inculcar nas crianças a enorme importância de ir regularmente ao banheiro, mas quando a criança, com um compreensível orgulho, obedece e mostra o que fez, os adultos tampam o nariz e se queixam do mau cheiro. Que se deve fazer, então? — perguntamos a essa enigmática gente grande.

Não sabem nada. Nunca pensaram com uma mente seqüencial. O importante, todavia, é que o cosmo é um sistema de vibrações, complexo e multidimensional, com uma disposição de espectros que se entrecruzam, como uma tapeçaria, e é daí — como tocando uma harpa — que tomamos e selecionamos o que deve ser designado como precioso, essencial ou agradável, repelindo ou fingindo ignorar o que pensamos ser sem importância ou desagradável (segundo as regras de nosso jogo, muitas vezes mal arquitetadas). As experiências "negativas" — onde se pode incluir a dor física  , a morte, a náusea, a vertigem, ou mesmo o apetite sexual (segundo os gostos) — devem ser evitadas do mesmo modo e sentido em que as regras da música clássica ocidental excluem como intervalo a quarta aumentada (por exemplo, dó e fá sustenidos).

A libertação, no sentido budista de nirvana, ou hindu, de moksha, é compreender que, afinal de contas, as cordas que tocamos, as vibrações produzidas, não têm nenhuma importância. Assim, um grande ioguim pode encarar a tortura com serenidade, pela simples razão de que ele pode se permitir contorcer e urrar, e detestar enormemente a experiência. Ele confia em sua natureza — quer dizer, na Natureza — para fazer o que exigem as circunstâncias. Ele sabe que a energia segue sempre a linha de menor resistência e que todo movimento é, em essência, peso, quer dizer, uma queda. Seu empenho fundamental é, pois, aquilo que Ananda Coomaraswamy   chamava "a vida perpétua, sem cálculo, no instante".

Isto, porém, não é para negar o valor da cultura, das artes e da moral. Ao contrário, é seu fundamento essencial, mais ou menos como a página em branco, limpa, é o fundamento essencial para escrever poesia. Todos os escritores, todos os poetas, gostam do papel branco. Como a natureza detesta o vazio, ela suga nossa energia criadora, e é por isso que o sutra do coração do budismo mahayana afirma que o vazio (ou o espaço) é uma forma, e que a forma é o vazio.

Vamos mais adiante. Perceber que vivemos num universo em que, no fundo, "tudo pode acontecer", constitui o que o mahayana chama prajna, ou a sabedoria intuitiva. Mas a inseparável serva de prajna é karuna, a compaixão, o que nos leva a fazer a pergunta: "Sendo dado um universo onde tudo pode acontecer, quais são as coisas mais belas, as mais generosas e as mais exuberantes que podemos fazer?" E por que não fazer a pergunta inversa: "Quais são as ações piores e as mais detestáveis que podemos cometer?" A resposta é irracional ou, quiçá, supra-racional. É que o conjunto do sistema dos espectros de vibrações, se bem que compreenda intensidades de experiência que atualmente chamamos de sofrimento absoluto, é uma celebração de amor e de alegria que, de qualquer outro modo, não poderia se perpetuar. O pretenso instinto de conservação, que nos impele a nos manter em relação e contra tudo, é apenas uma paródia dessa celebração — executada por seres teimosos, convencidos de serem estranhos ao cosmo e vítimas de suas ações. E a tarefa sublime de um bodhisattva consiste precisamente em livrá-los dessa crença.

Se estamos em harmonia com nós mesmos, com o peso, com a energia (seguindo suas linhas de menor resistência), descobriremos que todas as vibrações da natureza são extáticas, eróticas ou serenas. A existência é um orgasmo. É o que explica por que a filosofia vedanta chama o sistema de vibrações de sat-chit-ananda — realidade-consciência-beatitude. O nós, em queda livre — que se faz simplesmente, e sem esforço — é a Natureza mesma. Não se trata de algo encerrado no sistema de energia do mundo: é, de fato, esse sistema mesmo. A morte não nos aniquila. É apenas um dos termos, uma das extremidades das bandas espectrais que somos. A energia sendo vibração, ou seja, alternância, movimento e interrupção, esta interrupção faz parte de um processo contínuo, e nada pode ser verdadeiramente interrompido. A existência inclui o ser e o não-ser, o sólido e o espaço, a forma e o vazio.

Seguir a curva de menor resistência é fácil, por certo: mas isto exige uma certa inteligência. Não a seguimos imitando uma noção qualquer preconcebida de comportamento espontâneo. Tais falsificações cobrem há trinta anos as paredes das galerias do Ocidente, e numerosas são aquelas que macaqueiam a espontaneidade reproduzindo o que se crê ser o modo de comportamento dos animais. (Os verdadeiros animais, neste ponto, têm uma conduta, diversamente, muito mais moral que a dos humanos. Vejam os golfinhos. E os tubarões não saem de seu elemento para vir nos devorar.)

De fato, as configurações do movimento da água podem servir de modelo de conduta pela vida: é a razão pela qual Lao Tzu   utiliza a água como símbolo do tao — ela "ama e nutre a tudo, mas nada domina", e também ela "escoa sem cessar para o nível mais baixo, execrado pelos homens". Leiam o maravilhoso livro de Theodor Schwenck, Sensitive Chaos (Londres, Rudolf Steiner Press, 1965), onde mostra como as configurações do movimento dos gases e dos líquidos subentendem todas as formas de vazio, como as conchas e os ossos são esculturas que recordam as cadências dos líquidos. Eis o sentido oculto das palavras de Shakespeare  : "Os negócios dos homens são como o mar: beneficiar-se do fluxo leva à fortuna". Para atingir a melodia, a harmonia, é preciso seguir a via, o peso da correnteza.

Loco è laggiii da Belzebu remoto tanto, quanto la tomba si distende, che non per vista, mas per suono é noto.
D’um ruscelleto che quivi discende per la buca d’un sasso, ch’egli ha roso col corso ch’egli avvolge, e pocopende.
Lo Duca ed io per quel cammino ascoso entrammo a ritor-nar nel chiaro mondo. Inferno, 34, 127-134.

Lá no profundo há um lugar, que dista tanto de Belzebu, quanto se estende seu sepulcro: aí não penetra a vista.
Revela o som de arroio que descende por brecha do rochedo, que escavara, em torno serpeando, e pouco pende.
Para voltar do mundo à face ciara, nessa vereda escusa penetramos: de nós nenhum de repousar cuidara. (Trad.: J. P. Xavier Pinheiro)




Ver online : Ananda Coomaraswamy