Antropologia Filosófica
Ernst Cassirer
Trad. Vicente Felix de Queiroz
Editora Mestre Jou
1972
Parece ser universalmente admitido que a meta mais elevada da indagação filosófica é o conhecimento de si próprio. Em todos os conflitos travados entre as diferentes escolas filosóficas, este objetivo permaneceu invariável e inabalado: revelou-se o ponto de Arquimedes, o centro fixo e imutável, de todo pensamento. Nem mesmo os mais céticos pensadores negaram a possibilidade e a necessidade do conhecimento próprio. Desconfiavam de todos os princípios gerais relativos à natureza das coisas, mas esta descontiança pretendia apenas despertar um nôvo e mais seguro método de investigação. Na história da filosofia, o ceticismo tem sido, muito amiúde, simplesmente a contrapartida de um resoluto humanismo. Pela negação e pela destruição da certeza objetiva do mundo externo, espera o cético fazer com que todos os pensamentos do homem voltem a convergir para seu próprio ser. O conhecimento de si mesmo — declara ele — é a primeira precondição da auto-realização. Precisamos, tentar romper a cadeia que nos traz atados ao mundo exterior para podermos gozar nossa verdadeira liberdade. “La plus grande chose du monde c’est de sçavoir être à soy”, escreve Montaigne.
Entretanto, nem mesmo o modo de focalizar o problema — o método da introspecção — é seguro contra as dúvidas céticas. A filosofia moderna começou com o princípio de que a prova do nosso ser é inconquistável e inexpugnável. Mas os progressos do conhecimento psicológico não confirmaram esse princípio cartesiano. A tendência geral do pensamento, hoje em dia, volta a dirigir-se para o pólo oposto. Poucos psicólogos modernos seriam capazes de admitir ou recomendar um simples método de introspecção. Dizem-nos em geral que tal método é muito precário. Estão convencidos de que o único enfoque possível da psicologia científica é uma atitude behaviorista rigorosamente objetiva. Mas um behaviorista coerente e radical não atinge sua finalidade. Pode acautelar-nos contra possíveis erros metodológicos, mas não resolve todos os problemas da psicologia humana. Podemos criticar o ponto de vista puramente introspectivo ou desconfiar dele, mas não podemos suprimi-lo nem eliminá-lo. Sem a introspecção, sem a percepção imediata de sentimentos, emoções, percepções, pensamentos, não poderíamos sequer definir o campo da psicologia humana. Não obstante, é forçoso admitir que, seguindo apenas este caminho, nunca poderemos chegar a uma ampla visão da natureza do homem. A introspecção só nos revela o pequeno setor da vida humana acessível à nossa experiência individual. Nunca poderá cobrir todo o campo dos fenômenos naturais. Ainda que nos fosse possível coligir e combinar todos os dados, teríamos uma imagem muito pobre e fragmentária — um simples torso — da natureza humana.
Aristóteles declara que todo o conhecimento humano se origina de uma tendência básica da natureza humana, que se manifesta nas ações e reações mais elementares do homem. Toda a extensão da vida dos sentidos é determinada por essa tendência e dela está impregnada.
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Todos os homens, por natureza, desejam saber. Uma prova disto é o prazer que encontramos em nossos sentidos; pois, mesmo independentemente da sua utilidade, eles são amados por si próprios; e, acima de todos os outros, o sentido da vista: não só para ver nossas ações, mas também, quando nada fazemos, gostamos de ver a tudo o mais. A razão é que este sentido, principal entre todos, nos faz conhecer e traz à luz muitas diferenças entre as coisas. (Aristóteles, Metafísica, Livro A. 1 980 21. Tradução inglesa de W. D. Ross, The Works of Aristotle (Oxford, Clarendon Press, 1924), Vol. VIII.)
Esta passagem é altamente característica da concepção aristotélica do conhecimento em contraposição à concepção platônica. Um panegírico filosófico da vida sensorial do homem seria impossível na obra de Platão, que jamais compararia o desejo do conhecimento com o prazer que encontramos em nossos sentidos. Em Platão, a vida dos sentidos e a do intelecto estão separadas por vasto e intransponível abismo. O conhecimento e a verdade pertencem a uma ordem transcendental — ao domínio das ideias puras e eternas. O próprio Aristóteles está convencido de que o conhecimento científico não é possível apenas através do ato da percepção. Mas fala como um biologista quando nega a separação platônica entre o mundo ideal e o mundo empírica, Procura explicar o mundo ideal, o mundo do conhecimento, em termos de vida. Em ambos os domínios, de acordo com Aristóteles, encontramos a mesma continuidade ininterrupta. Tanto na natureza quanto no conhecimento humano, as formas mais elevadas evolvem-se das formas inferiores. A percepção dos sentidos, a memória, a experiência, a imaginação e a razão estão todas ligadas por um elo comum; são apenas estádios diferentes e diferentes expressões da mesma atividade fundamental, que atinge sua mais alta perfeição no homem mas que, de certo modo, é partilhada pelos animais e por todas as formas de vida orgânica.
Se adotássemos este ponto de vista biológico, teríamos de esperar que as primeiras etapas do conhecimento humano concernissem exclusivamente ao mundo externo. No tocante a todas as suas necessidades imediatas e interesses práticos, o homem depende do seu meio físico. Não pode viver sem se adaptar constantemente às condições do mundo circundante. Os passos iniciais para a sua vida intelectual e cultural podem ser descritos como atos que envolvem uma espécie de ajustamento mental ao meio imediato. Mas, à proporção que progride a cultura humana, não tardamos em tropeçar com uma tendência oposta da vida humana. Desde o despontar da consciência humana, encontramos uma visão introvertida da vida, que acompanha e complementa a extrovertida. Quanto mais longe seguirmos o desenvolvimento da cultura humana, a partir desses primórdios, tanto mais se evidenciará a visão introvertida. A curiosidade natural do homem principia, lentamente, a mudar de direção. Podemos estudar este paulatino desenvolvimento em quase todas as formas de sua vida cultural. Nas primeiras explicações mitológicas do universo encontramos sempre uma antropologia primitiva ao lado de uma cosmologia primitiva. O problema da origem do mundo está inextricavelmente entrelaçado com o da origem do homem. A religião não destrói estas primeiras explicações mitológicas. Pelo contrário, preserva a cosmologia e a antropologia mitológicas dando-lhes nova forma e nova profundidade. A partir desse momento, já não se concebe o conhecimento de si mesmo como um interesse meramente teórico. Não é simplesmente um tema de curiosidade ou especulação; passa a ser proclamado a obrigação fundamental do homem. Os grandes pensadores religiosos foram os primeiros a inculcar essa exigência moral. Em todas as formas superiores da vida religiosa, a máxima “Conhece-te a ti mesmo” é considerada como um imperativo categórico, lei religiosa e moral básica. Neste imperativo sentimos, por assim dizer, uma súbita inversão do primeiro instinto natural de conhecer — percebemos uma transposição de todos os valores. Na história de todas as religiões do mundo — judaísmo, budismo, confucionismo e cristianismo — podemos observar os passos individuais deste desenvolvimento.
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O mesmo princípio vale para a evolução geral do pensamento filosófico. Em suas primeiras fases, a filosofia grega parece exclusivamente interessada pelo universo físico. A cosmologia predomina claramente sobre todos os outros ramos da investigação filosófica. Não obstante, o que caracteriza a profundidade e a amplitude do espírito grego é o fato de quase todo pensador grego representar, ao mesmo tempo, um novo tipo geral de pensamento. Além da filosofia física da Escola de Mileto, os pitagóricos descobriram uma filosofia matemática, enquanto os pensadores eleáticos são os primeiros a conceber o ideal de uma filosofia lógica. Encontra-se nas fronteiras entre o pensamento cosmológico e o antropológico. Embora ainda fale como filósofo natural e pertença aos “antigos fisiologistas”, está convencido de que é impossível penetrar segredo da natureza sem haver estudado o segredo do homem. Precisamos satisfazer à exigência da introspecção se quisermos aprender a realidade e compreender-lhe o significado. (Por isso foi possível a Heráclito caracterizar toda sua filosofia em duas palavras: edixesamem emeoton (“Procurei por mim mesmo” – Fragmento 101, em Diels, Die Fragmente der Vorsokratiker, editado por W. Krantz – 5a edição, Berlim, 1934 -, I, 173). Mas embora fosse, em certo sentido, inerente à primitiva filosofia grega, esta nova tendência do pensamento só atingiu a maturidade na época de Sócrates. Assim, o problema do homem é o marco divisório entre o pensamento socrático e pré-socrático. Sócrates jamais ataca nem critica as teorias dos seus predecessores. Não tenciona introduzir uma nova doutrina filosófica. Nele, porém, todos os antigos problemas são vistos dentro de uma nova luz, por se referirem a um novo centro intelectual. Os problemas gregos da filosofia natural e da metafísica são repentinamente eclipsados por uma nova questão, que parece, daí por diante, absorver todo o interesse teórico do homem. Em Sócrates já não encontramos uma teoria independente da natureza nem uma teoria lógica independente; muito menos uma teoria ética, coerente e sistemática — no sentido de se ter desenvolvido em sistemas éticos posteriores. Só resta uma pergunta: Que é o homem? Sócrates mantém e defende sempre o ideal de uma verdade objetiva, absoluta, universal. Mas o único universo que conhece, e ao qual se referem todas suas indagações, é o universo do homem. Sua filosofia — se alguma possuir — é estritamente antropológica. Num dos diálogos de Platão, descreve-se Sócrates conversando com seu discípulo Fedro. Passeiam e, em breve, chegam a um ponto fora das portas de Atenas. Sócrates se extasia com a beleza do lugar. Delicia-se com a paisagem, que não cessa de elogiar. Porém Fedro o interrompe. Admira-se de que Sócrates proceda como um estrangeiro acompanhado de um guia, que lhe mostra os sítios mais aprazíveis. “Nunca cruzais a fronteira?” pergunta ele. Sócrates responde simbolicamente: “É verdade, meu bom amigo, e espero que me desculparás quando ouvires o motivo, isto é, que sou um amante do conhecimento e os homens que habitam na cidade são meus mestres, e não as árvores, nem o campo”. (Platão, Fedro 230A, tradução de Jowett)
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Entretanto, quando estudamos os diálogos socráticos de Platão, em parte alguma encontramos uma solução direta para o novo problema. Sócrates nos dá uma análise detalhada e meticulosa das qualidades individuais e virtudes humanas. Procura determinar e definir a natureza destas qualidades: bondade, justiça, temperança, coragem e assim por diante, sem nunca se arriscar a definir o homem. Como explicar esta aparente deficiência? Teria Sócrates adotado deliberadamente um abordo indireto — que lhe permitisse apenas arranhar a superfície do problema sem jamais lhe penetrar as profundezas e o verdadeiro âmago? Neste ponto, mais do que em qualquer outro, deveríamos desconfiar da ironia socrática. É precisamente a resposta negativa de Sócrates que projeta nova e inesperada luz sobre a questão e nos proporciona uma visão positiva de sua concepção do homem. Não podemos descobrir a natureza do homem da mesma maneira pela qual podemos desvendar a natureza das coisas físicas. Estas podem ser descritas em termos de suas propriedades objetivas, mas o homem só pode ser descrito e definido em termos de sua consciência, fato que origina um problema inteiramente novo, insolúvel por nossos métodos usuais de investigação. Aqui se revelaram ineficazes e inadequadas a observação empírica e a análise lógica no sentido em que estes termos foram empregados na filosofia pré-socrática; pois só convivendo com seres humanos é que teremos a visão do caráter do homem. Para compreendê-lo, precisamos efetivamente defrontá-lo face a face. Por isto, o traço distintivo da filosofia socrática não é um novo conteúdo objetivo, mas nova manifestação e função do pensamento. Até então concebida como monólogo intelectual, a filosofia transforma-se em diálogo. Só por meio do pensamento dialogai ou dialético podemos abordar o conhecimento da natureza humana. Antes disto teria sido possível imaginar a verdade como coisa já estabelecida, que poderia ser entendida por um esforço do pensador individual e prontamente revelada a outros. Mas Sócrates já não endossava este ponto de vista. É tão impossível — diz Platão na República — implantar a verdade na alma de um homem quanto dar a visão a um cego de nascença. Por sua natureza, a verdade é filha do pensamento dialético. Só pode ser obtida, por conseguinte, pela constante cooperação dos assuntos em mútua interrogação e resposta. Não tem, portanto, nenhuma semelhança com um objeto empírico, precisando ser compreendida como resultado de um ato social. Temos aqui a resposta, nova e indireta, à pergunta “Que é o homem?”. Dizem que é a criatura que está em contínua procura de si mesmo — e que, em todos os momentos de sua existência, precisa escrutar as condições da mesma. Neste exame, nesta atitude crítica em relação à vida humana, está o verdadeiro valor da vida humana. “Uma vida que não é examinada”, diz Sócrates, na Apologia, “não vale a pena ser vivida” (Platão, Apologia 37E, tradução de Jowett). Sintetizamos seu pensamento dizendo que ele define o homem como o ser que, a uma pergunta racional, pode dar uma resposta racional. Neste círculo estão compreendidos tanto seu conhecimento quanto sua moral. É por esta faculdade fundamental, por esta faculdade de dar uma resposta a si mesmo e aos outros, que o homem se torna um ser “responsável”, um indivíduo moral.
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Em certo sentido, essa primeira resposta sempre permaneceu a resposta clássica. O problema socrático e o método socrático jamais poderão ser esquecidos ou suprimidos. Por intermédio do pensamento platônico deixou sua marca (VIDE NOTA ABAIXO) em todo o desenvolvimento futuro da civilização. Não existe, talvez, meio mais seguro nem mais rápido de nos convencermos da profunda unidade e da perfeita continuidade do pensamento filosófico antigo do que o confronto desses primeiros estádios da filosofia grega com um dos últimos e mais nobres produtos da cultura greco-romana, o livro Para SiSi Mesmo, escrito pelo Imperador Marco Aurélio Antonino. A primeira vista, a comparação pode parecer arbitrária, pois Marco Aurélio não era um pensador original, nem seguia um método rigorosamente lógico. Êle mesmo dá graças aos deuses porque, quando veio a interessar-se por filosofia, não se converteu em escritor filosófico nem em solucionador de silogismos (Marcus Aurelius Antoninus, Ad se ipsum – eis eauton, Livro I, par. 8; na maioria dos trechos seguintes cito a versão inglesa de C. R. Haines, The Communings with Himself of Marcus Aurelius Antoninus – Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1916 -, Loeb Classical Library). Mas Sócrates e Marco Aurélio têm em comum a convicção de que, para descobrirmos a verdadeira natureza ou essência do homem precisamos, antes de tudo, separar do seu ser todas as características externas e incidentais.
NOTA: Nas páginas seguintes não tentarei apresentar um apanhado Ao desenvolvimento histórico da filosofia antropológica. Escolherei tão-somente uns poucos estádios típicos, a fim de ilustrar a linha geral de pensamento. A história da filosofia do homem ainda é um desiderato. Ao passo que a história da metafísica, da filosofia natural, do pensamento ético e científico foi estudada em todos os seus pormenores, ainda estamos no princípio. Durante o último século, a importância deste problema foi sentida cada vez mais intensamente. Wilhelm Dilthey concentrou todos os esforços em sua solução. Mas, embora rica e sugestiva, a obra de Dilthey permaneceu incompleta. Um de seus discípulos, Bernhardt Groethuysen, apresentou excelente descrição do desenvolvimento geral da filosofia antropológica. Infelizmente, porém, sua descrição termina antes da passagem derradeira e decisiva — a de nossa era moderna. Veja B. Groethuysen, “Philosophische Anthropologie”, Handbuch der Philosophie (Munique e Berlim, 1931), III, 1-207. Ver também seu artigo “Para uma Filosofia Antropológica”, Filosofia e História, Ensaios apresentados a Ernst Cassirer (Oxford, Clarendon Press, 1936), pp. 77-89.
Não digais que seja de homem nenhuma dessas coisas que não lhe pertencem como homem. Não podem ser afirmadas de um homem; a natureza do homem não as garante; elas não são consumações daquela natureza. Consequentemente, nem o fim por que vive o homem está colocado nessas coisas, nem o que conduz à perfeição do fim, a saber, o Bem. Além disso, se algumas dessas coisas pertencessem a um homem, não lhe caberia desprezá-las nem se opor a elas,… mas sendo tudo como é, quanto mais puder libertar-se,… dessas e de outras coisas com equanimidade, tanto melhor será o homem (Marcus Aurelius, op. cit,, Livro V, par. 15).
Tudo o que acontece ao homem, vindo de fora, é irrito e nulo. Sua essência não depende de circunstâncias externas; depende exclusivamente do valor que ele dá a si mesmo. Riquezas, posição, distinção social e até a saúde ou os dotes intelectuais — tudo isso se torna indiferente (adiaphonon). Só tem importância a tendência, a atitude interior da alma; e esse princípio interior não pode ser perturbado. “O que não pode tornar o próprio homem pior do que antes também não pode piorar-lhe a vida, nem prejudicá-la, quer venha de fora quer de dentro” (Idem, Livro IV, par. 8).
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A exigência da interrogação de si mesmo aparece, portanto, não só no estoicismo mas, também, na concepção de Sócrates, como privilégio do homem e sua obrigação fundamental (Idem, Livro III, par. 6.). Mas esta obrigação é agora compreendida num sentido mais amplo; seus antecedentes não são apenas morais senão também universais e metafísicos. “Nunca deixes de fazer a ti mesmo esta pergunta e a te reperguntares assim: Que relação tenho eu com esta parte de mim que denominam a Razão governante (to hegemonikon)?” (Idem, Livro V, par. 11) Quem vive em harmonia com seu próprio eu, o seu daemon, vive em harmonia com o universo; pois tanto a ordem universal quanto a ordem pessoal não são mais do que expressões e manifestações diferentes de um princípio fundamental comum. O homem demonstra seu poder inerente de crítica, de julgamento e de discernimento ao conceber que, nessa correlação, o Eu, e não o Universo, representa o papel principal. Depois que o Eu conquista sua forma interior, essa forma permanece inalterável e imperturbável. “Depois de formada, a esfera continua redonda e autêntica” (Idem, Livro VIII, par. 41). Esta, por assim dizer, é a última palavra da filosofia grega — uma palavra que, mais uma vez, encerra e explica o espírito em que foi originalmente concebida. Esse espírito foi um espírito de julgamento, de discernimento crítico entre o Ser e o Não-Ser, entre a verdade e a ilusão, entre o bem e o mal. A vida em si mesma é mutável e flutuante, mas o verdadeiro valor da vida deve ser buscado numa ordem eterna, que não admite mudança. Não está no mundo de nossos sentidos, e é só pelo poder de nosso juízo que podemos compreender essa ordem. O juízo é o poder central do homem, a fonte comum da verdade e da moral. Pois é a única coisa em que o homem depende inteiramente de si mesmo; é livre, autônomo, auto-suficiente (Cfr. idem, Livro V, par. 14).
“Não te aflijas”, diz Marco Aurélio, não sejas muito ansioso, mas sê teu próprio amo e olha para a vida como um homem, como ser humano, como cidadão, como criatura mortal. (…) As coisas não tocam a alma, porque são externas e permanecem imóveis, mas a nossa perturbação vem apenas daquele juízo que formamos em nós mesmos. Todas estas coisas, que vês, mudam imediatamente, e já não serão; e tem sempre em mente o número das mudanças que já presenciaste. O Universo — mutação, a Vida — afirmação. [NOTA: Livro IV, par. 3. O termo “afirmação” ou “julgamento” me parece uma expressão muito mais adequada do pensamento de Marco Aurélio do que “opinião”, que encontro em todas as versões inglesas que consultei. “Opinião” (a platônica doxa) contém um elemento de incerteza e de mudança não pretendido por Marco Aurélio. Como termos equivalentes a opolepssis encontramos em Marco Aurélio krisis, krima, diakrisis. Cf. Livro III, par. 2; VI, par. 52; VIII, pars. 28, 47.]
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O maior mérito desta concepção estóica do homem reside no fato de que ela dá ao homem, ao mesmo tempo, um profundo sentimento de sua harmonia com a natureza e de sua independência moral da natureza. Na mente do filósofo estóico estas asserções não entram em conflito, são correlativas. 0 homem se encontra em perfeito equilíbrio com o universo, e sabe que este equilíbrio não deve ser perturbado por nenhuma força externa. Tal é o caráter dual da “impassibilidade” (ataraxia) estóica. A teoria estóica revelou-se uma das mais vigorosas forças formadoras da cultura antiga. Mas, de repente, viu-se em presença de uma força nova, até então desconhecida. O conflito com a nova força abalou, até seus fundamentos, o ideal clássico do homem. As teorias estóica e cristã sobre o homem não são necessariamente hostis: trabalham conjuntamente na história das ideias e, não raro, as encontramos em estreita conexão no mesmo pensador. Entretanto, existe sempre um ponto em que os ideais cristão e estóico se mostram irreconciliáveis. A afirmada independência absoluta do homem, que na teoria estóica era considerada virtude fundamental, transformou-se, na teoria cristã, em seu vício e erro fundamentais. Enquanto nele perseverar, o homem não terá caminho possível para a salvação. A luta entre os dois conceitos antagônicos perdurou por muitos séculos e, no início da época moderna, na era da Renascença e no século XVII — ainda sentimos toda sua força (Sobre uma narrativa minuciosa consulte Cassirer, Descartes, Estocolmo, 1939, pp. 215 e seguintes).
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Aqui podemos entender um dos traços mais característicos da filosofia antropológica, que não é, como outros ramos da investigação filosófica, um lento e contínuo desenvolvimento de ideias gerais. Até na história da lógica, da metafísica e da filosofia natural encontramos as mais acerbas oposições. História que pode ser descrita, em termos hegelianos, como um processo dialético em que cada tese é seguida por sua antítese. Não obstante, existe uma coerência interior, uma ordem lógica, clara, que liga as diferentes etapas do processo dialético. A filosofia antropológica, por outro lado, apresenta um caráter totalmente diverso. Se quisermos apreender-lhe o significado e sua verdadeira importância, precisamos escolher não o estilo épico de descrição, mas o dramático. Pois defrontamos, não um pacífico desenvolvimento de conceitos e teorias, senão um embate entre forças espirituais em conflito. A história da filosofia antropológica está cheia das mais profundas paixões e emoções humanas. Não se ocupa de um problema teórico isolado, por mais geral que seja seu âmbito; nela está em jogo todo o destino do homem, clamando por uma decisão final. Este caráter do problema encontrou sua expressão mais clara na obra de Agostinho, que se situa na fronteira entre duas épocas. Vivendo no quarto século da era cristã, cresceu na tradição filosófica grega e foi sobretudo o sistema neoplatônico que marcou toda sua filosofia. Por outro lado, porém, é o pioneiro do pensamento medieval; é o fundador da filosofia medieval e da dogmática cristã. Nas Confissões podemos seguir, passo a passo, seu caminhar da filosofia grega para a revelação cristã. De acordo com ele, toda a filosofia anterior ao advento de Cristo estava sujeita a um erro fundamental e se achava infestada por uma mesma heresia. O poder da razão era exaltado como o mais alto poder do homem. Mas o que o homem nunca poderia saber, enquanto não fosse iluminado por uma revelação divina especial, é que a própria razão é uma das coisas mais discutíveis e ambíguas do mundo. A razão não pode mostrar-nos o caminho para a claridade, a verdade e a sabedoria. Ela mesma é obscura em seu significado e sua origem está envolta em mistério — mistério que só a revelação cristã é capaz de solucionar! Para Agostinho, a razão não tem uma natureza simples e única, senão dupla e dividida. O homem foi criado à imagem de Deus; e no estado original, em que se viu, ao sair das mãos de Deus, era igual ao seu arquétipo. Porém, tudo se perdeu pela queda de Adão. A partir desse momento se obscureceu todo o poder original da razão, que, sozinha, entregue às suas próprias faculdades, jamais encontrará o caminho de volta. Não pode reconstruir-se nem retornar, por suas próprias forças, à pura essência anterior. Esta reforma só será possível, pela ajuda sobrenatural e poder da graça divina. É a nova antropologia, no entender de Agostinho, a que se mantém em todos os grandes sistemas de pensamento medieval. Mesmo Tomás de Aquino, discípulo de Aristóteles, que volta às fontes da filosofia grega, não se atreve a desviar-se deste dogma fundamental. Concede à razão humana um poder muito maior do que Agostinho; mas está convencido de que a razão não pode utilizar-se corretamente desses poderes se não for guiada e iluminada pela graça de Deus. Aqui chegamos a uma completa inversão de todos os valores sustentados pela filosofia grega. O que outrora parecia ser o mais alto privilégio do homem revela-se agora o seu perigo e tentação; o que constituía seu orgulho, agora se converte em sua mais profunda humilhação. O preceito estóico, segundo o qual o homem precisa obedecer e reverenciar seu princípio interior, o daemon que traz consigo, agora se reputa perigosa idolatria.
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Seria impraticável continuar descrevendo aqui o caráter desta nova antropologia, analisar-lhe os motivos fundamentais e acompanhar-lhe o desenvolvimento. Mas, para compreender seu sentido podemos optar por um caminho diferente e mais curto. No princípio dos tempos modernos surgiu um pensador que deu a esta antropologia novo impulso e esplendor. Na obra de Pascal encontrou ela sua última e, talvez, mais notável expressão. Pascal estava preparado para esta tarefa como nenhum outro escritor. Possuía um dom incomparável de elucidar as questões mais obscuras, de condensar e concentrar sistemas complexos e dispersos de pensamento. Nada parece impenetrável ao seu pensamento e à lucidez de seu estilo. Nele se unem todas as vantagens da literatura e da filosofia modernas, embora as utilize como armas contra o espírito moderno, o espírito de Descartes e sua filosofia. A primeira vista, Pascal parece aceitar todas as pressuposições do cartesianismo e da ciência moderna. Nada há na natureza capaz de resistir ao esforço da razão científica, pois nada existe que possa resistir à geometria. Foi curioso acontecimento na história das ideias que um dos maiores e mais profundos geômetras se convertesse em paladino extemporâneo da antropologia filosófica da Idade Média. Aos dezesseis anos, Pascal escreveu o tratado sobre seções cônicas, que abriu novo campo, rico e fecundo, ao pensamento geométrico. Não era ele apenas grande geômetra, mas filósofo; e, assim, não se contentava em absorver-se com problemas geométricos, desejando também compreender o verdadeiro uso, a extensão e os limites da geometria. Deste modo, viu-se levado a estabelecer a distinção fundamental entre o “espírito geométrico” e o “espírito agudo ou sutil”. O espírito geométrico sobressai em todos os assuntos suscetíveis de uma análise perfeita — que podem ser divididos até seus primeiros elementos. (NOTA: Sobre a distinção entre l’esprit géométrique e l’esprit de finesse, compare o tratado de Pascal “De l’esprit géométrique” e Pensées de Pascal, editados por Charles Louandre, Paris, 1858, cap. IX, p. 231; nos trechos que se seguem cito a tradução inglesa de O. W. Wight, Nova Iorque, 1861) Parte de certos axiomas, extraindo deles inferências cuja verdade pode ser demonstrada por regras lógicas universais. A vantagem deste espírito consiste na clareza de seus princípios e na necessidade de suas deduções. Mas nem todos os objetos admitem tal tratamento. Existem coisas que, pela sua sutileza e infinita variedade, desafiam todas as tentativas de análise lógica. E se há alguma coisa no mundo que precisamos tratar desta segunda maneira, é o espírito do homem. O que caracteriza o homem é a riqueza e a sutileza, a variedade e a versatilidade de sua natureza. Por isto mesmo, a matemática nunca poderá vir a ser o instrumento de uma verdadeira doutrina do homem, de uma antropologia filosófica. É ridículo falar do homem como se se tratasse de uma proposição geométrica. Uma filosofia moral em termos de um sistema de geometria — uma Ethica more geométrico demonstrata — é para o espírito de Pascal um absurdo, um sonho filosófico. Nem a lógica ou a metafísica tradicionais estão em melhor posição para compreender e resolver o enigma do homem. Sua primeira e suprema lei é o princípio de contradição. O pensamento racional, o pensamento lógico e metafísico, só pode compreender os objetos que estão livres da contradição e possuem uma natureza e verdade coerentes. Entretanto, é precisamente esta homogeneidade que nunca encontramos no homem. Não é lícito ao filósofo construir um homem artificial; cumpre-lhe descrever um homem verdadeiro. Todas as chamadas definições do homem não serão mais do que mera especulação, enquanto não se basearem em nossa experiência sobre ele, dela tendo a confirmação. Não há outro caminho para se conhecer o homem a não ser o de compreender-lhe a vida e seu procedimento. Mas o que encontramos aqui desafia toda tentativa de inclusão numa fórmula única e simples. A contradição é o próprio elemento da existência humana. 0 homem não tem “natureza” — não é simples e homogêneo. É uma estranha mistura de ser e não-ser. Seu lugar fica entre estes dois pólos opostos.
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Só existe, portanto, uma forma de abordarmos o segredo da natureza humana: a religião. Ela nos mostra que existe dualidade no homem — o homem antes e depois da queda; estava destinado à mais alta glória, mas foi destronado. Com a queda perdeu o poder e perverteram-se-lhe a razão e a vontade. Compreendida em seu sentido filosófico, no sentido de Sócrates, Epicteto e Marco Aurélio, a máxima clássica “Conhece-te a ti mesmo” é, portanto, não só ineficaz mas também enganosa e errônea. O homem não pode confiar em sisi mesmo nem ouvir de si para si. Tem que guardar silêncio próprio a fim de ouvir uma voz superior e mais verdadeira. “Que será feito, então, de ti, ó homem! que indagas qual é tua verdadeira condição por meio de tua razão natural?. . . Conhece, pois, homem soberbo, que paradoxo és para ti mesmo. Humilha-te, razão impotente; emudece, natureza imbecil; aprende que o homem sobrepuja infinitamente o homem, e ouve de teu amo tua verdadeira condição, que ignoras. Ouve a Deus” (Pensées, cap. X, seç. 1).
O que aqui se expõe não pretende ser uma solução teórica do problema do homem. A religião não pode oferecê-la, e tem sido sempre acusada, por seus adversários, de obscura e incompreensível. Mas a censura se converte no mais alto louvor quando consideramos seu verdadeiro objetivo. A religião não pode ser clara e racional; conta-nos uma história obscura e sombria: a história do pecado e da queda do homem. Revela um fato para o qual não há explicação racional possível. Não podemos explicar o pecado do homem, pois não foi produzido nem exigido por nenhuma causa natural. Nem podemos explicar sua salvação, dependente de um ato inescrutável da graça divina. É dada e negada livremente; não há ação nem mérito humano que possam merecê-la. A religião, portanto, nunca pretende esclarecer o mistério do homem, apenas o confirma e aprofunda. O Deus de que ela fala é um Deus absconditus, um Deus oculto; por isso, até sua imagem, o homem, não pode deixar de ser mistério. O homem é também um homo absconditus. A religião não é “teoria” de Deus e do homem e das suas relações mútuas. A única resposta que recebemos da religião é que é vontade de Deus ocultar-se. “Então, estando Deus oculto, nenhuma religião que não nos diga que Deus está oculto é verdadeira; e nenhuma religião que não ofereça razão para isto é instrutiva. A nossa faz tudo isto: Vere tu es Deus absconditus (Idem, cap. XII, seç. 5). … Pois a natureza é tal que, em toda a parte, indica um Deus perdido, tanto no homem quanto fora do homem” (Idem, cap. XIII, seç. 3). Por conseguinte, a religião, por assim dizer, é uma lógica do absurdo; pois só assim consegue entender a absurdeza, a contradição interior, o ser quimérico do homem. “Nada, por certo, nos impressiona tão rudemente quanto esta doutrina; e, todavia, sem este mistério, o mais incompreensível de todos, somos incompreensíveis para nós mesmos. O nó de nossa condição se retorce e remoinha nesse abismo; de sorte que o homem é mais inconcebível sem este mistério que este mistério é inconcebível para o homem” (Idem, cap. X, seç. 1).
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O que aprendemos com o exemplo de Pascal é que, no princípio dos tempos modernos, ainda se sentia em toda a sua força o velho problema. Até depois do aparecimento do Discours de la méthode de Descartes, o espírito moderno ainda lutava com as mesmas dificuldades. Achava-se dividido entre duas soluções inteiramente incompatíveis. Mas, ao mesmo tempo, começa um lento desenvolvimento intelectual, através do qual a pergunta: Que é o homem? se transforma e, por assim dizer, se eleva a um nível superior. Neste ponto, o importante não é tanto o descobrimento de fatos novos quanto o descobrimento de um novo instrumento do pensamento. Agora, pela primeira vez, o espírito científico, no sentido moderno da palavra, entra em cena. Procura-se uma teoria geral do homem baseada em observações empíricas e em princípios lógicos gerais. O primeiro postulado desse espírito novo e científico foi a eliminação de todas as barreiras artificiais que, até então, haviam separado o mundo humano do resto da natureza. Para compreender a ordem das coisas humanas precisamos começar com um estudo da ordem cósmica. E esta ordem cósmica surge agora a uma luz inteiramente nova. A nova cosmologia, o sistema heliocêntrico introduzido na obra de Copérnico, é a única base sólida e científica para uma nova antropologia.
Nem a metafísica clássica nem a religião e a teologia medievais estavam preparadas para esta tarefa. Ambos corpos de doutrina, embora diferentes nos métodos e propósitos, fundam-se num princípio comum. Ambos concebem o universo como uma ordem hierárquica, em que o homem ocupa o supremo lugar. Na filosofia estóica e na teologia cristã descrevia-se o homem como o fim do universo. As duas doutrinas estavam convencidas de que existe uma providência geral, que governa o mundo e o destino do homem. Este conceito é uma das pressuposições básicas do pensamento estóico e cristão (sobre o conceito estóico de providência – pronoia -, veja, por exemplo, Marco Aurélio, op. cit., Livro II, par. 3). Tudo isto é repentinamente posto em dúvida pela nova cosmologia. A pretensão do homem de ser o centro do universo perdeu sua razão de ser. O homem está colocado num espaço infinito em que seu ser parece resumir-se num ponto de fuga isolado. Está cercado de um universo mudo, de um mundo hermético para seus sentimentos religiosos e para suas mais profundas necessidades morais.
É compreensível, e até necessária, que a primeira reação à nova concepção do mundo fosse apenas negativa — uma reação de dúvida e temor. Nem mesmo os maiores pensadores puderam libertar-se deste sentimento. “Le silence éternel de ces espaces infinis m’effraye”, diz Pascal (Pascal, op. cit., cap. XXV, seç. 18). O sistema copernicano tornou-se um dos mais vigorosos instrumentos do agnos-ticismo e ceticismo filosóficos que se desenvolveram no século XVI. Em sua crítica da razão humana, Montaigne emprega os conhecidos e tradicionais argumentos dos sistemas de ceticismo grego. Acrescenta-lhes, porém, uma nova arma, que, em suas mãos, se revela poderosíssima e de suma importância. Nada melhor para nos humilhar e quebrar o orgulho da razão humana que uma visão sem preconceitos do universo físico. Que o homem, diz ele num trecho famoso de sua Apologie de Raimond Sebond, me faça compreender, pela força da sua razão, sobre que alicerces construiu as grandes vantagens que julga ter sobre as outras criaturas. Quem o fez acreditar que esse admirável movimento da abóbada celeste, a luz eterna das luminárias que giram tão alto sobre sua cabeça, os maravilhosos e terríveis movimentos do oceano infinito foram estabelecidos e continuam há tantos séculos para seu serviço e conveniência? Pode-se imaginar alguma coisa mais ridícula do que esta miserável e desgraçada criatura, que nem sequer é dona de si mesma, exposta às injúrias de todas as coisas, intitular-se senhora e imperatriz do mundo, do qual não tem o poder de conhecer a menor parte, quanto mais de governar o todo? (Montaigne, Essais, II, cap. XII. Tradução inglesa de William Hazlitt, The Works of Michael de Montaigne, 2a edição, Londres, 1845, p. 205)
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O homem está sempre propenso a considerar o pequeno horizonte que o cerca como o centro do mundo e a fazer, de sua vida particular e privada, o modelo do universo, mas precisa renunciar a esta vã pretensão, a esta mesquinha e provinciana maneira de pensar e de julgar.
Quando as vinhas da nossa aldeia são destruídas pela geada, o vigário da paróquia logo conclui que a indignação de Deus se voltou contra toda a raça humana… E quem, ao ver nossas guerras civis, não brada que a máquina do mundo inteiro está desandando e que o dia do juízo final está próximo!… Mas quem figurar em sua imaginação, como num quadro, a grandiosa imagem de nossa mãe natureza, em toda sua majestade e esplendor; quem souber reconhecer em sua face uma variedade tão geral e constante, e que se veja a si mesmo, e não só a si mesmo mas a um reino inteiro, menor que um ponto de lápis, em comparação com o todo, será capaz de avaliar as coisas de acordo com seu verdadeiro valor e grandeza. (Idem, I, cap. XXV. Tradução inglesa, pp. 65 e seguintes)
Estas palavras de Montaigne nos fornecem a pista de todo o desenvolvimento subsequente da teoria moderna do homem. A filosofia moderna e a ciência moderna precisavam aceitar o desafio contido nessas palavras. Precisavam provar que, longe de enfraquecer ou dificultar o poder da razão humana, a nova cosmologia o estabelece e confirma. Tal foi a tarefa, combinando esforços, dos sistemas metafísicos dos séculos XVI e XVII, que seguem caminhos diferentes, mas todos se dirigem para a mesma meta. Esforçam-se, por assim dizer, para transformar em bênção a aparente maldição da nova cosmologia. Giordano Bruno foi o primeiro pensador a pisar nesse caminho, que, em certo sentido, veio a ser o de toda a metafísica moderna. O que caracteriza sua filosofia é que nela o termo “infinito” muda de sentido. No pensamento clássico grego o infinito é um conceito negativo, é o que não tem limites ou o indeterminado. Sem limites nem forma, é, portanto, inacessível à razão humana, que vive no domínio das formas e nada mais compreende senão formas. Nesse sentido, o finito e o infinito, peras e apeiron, são, segundo declara Platão no Filebo, os dois princípios fundamentais que se opõem necessariamente. Na doutrina de Bruno o infinito já não significa uma simples negação ou limitação. Pelo contrário, significa a incomensurável e inexaurível abundância de realidade e o poder ilimitado do intelecto humano. É neste sentido que Bruno compreende e interpreta a doutrina de Copérnico. A seu ver, foi esta doutrina o primeiro passo decisivo no sentido da auto-libertação do homem. O homem já não vive no mundo como prisioneiro encerrado dentro das estreitas muralhas de um universo físico finito. Pode atravessar os ares, rompendo todas as fronteiras imaginárias das esferas celestes, erguidas por uma metafísica e uma cosmologia falsas (sobre maiores detalhes veja Cassirer, Individuum und Kosmos in der Philosophie der Renaissance, Lipsia, 1927, pp. 197 e seguintes). O universo infinito não impõe limites à razão humana; ao contrário, é o seu grande incentivo. O intelecto humano toma consciência da própria infinidade medindo seus poderes pelo universo infinito.
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Tudo isto está expresso na obra de Bruno poeticamente, não em linguagem científica. Ainda desconhecia o novo mundo da ciência moderna, a teoria matemática da natureza, não lhe sendo possível, portanto, prosseguir no caminho até sua conclusão lógica. Foram necessários os esforços combinados de todos os metafísicos e cientistas do século XVII para superar a crise intelectual provocada pelo descobrimento do sistema coperniciano. Todo grande pensador — Galileu, Descartes, Leibniz, Espinosa — teve sua participação especial na solução do problema. Afirma Galileu que, no campo da matemática, o homem atinge o ponto culminante de todo o conhecimento possível — um conhecimento não inferior ao do intelecto divino. Claro está que o intelecto divino conhece e concebe um número infinitamente maior de verdades matemáticas do que nós, mas, no tocante à certeza objetiva, as poucas verdades conhecidas pela mente humana são conhecidas tão perfeitamente pelo homem quanto por Deus (Galileu, Dialogo dei due massimi sistemi dei mondo, I, Edizione nazionale, VII, 129). Descartes principia com sua dúvida universal, que parece encerrar o homem nos limites da própria consciência. Parece não haver meios de sair deste círculo mágico nem possibilidade de aproximação da realidade. Neste ponto, a ideia do infinito se revela o único instrumento para desfazer a dúvida universal. Só por meio deste conceito podemos demonstrar a realidade de Deus e, de maneira indireta, a realidade do mundo material. Leibniz combina esta prova metafísica com uma nova prova científica. Descobre um novo instrumento do pensamento matemático — o cálculo infinitesimal, cujas regras tornam inteligível o universo físico; e que as leis da natureza são apenas casos especiais das leis gerais da razão. É Espinosa quem se aventura a dar o último passo decisivo nesta teoria matemática do mundo e do espírito humano. Constrói uma nova ética, uma teoria das paixões e afeições, uma teoria matemática do mundo moral. Está convencido de que só por meio desta teoria podemos atingir nossa finalidade: o objetivo de uma “filosofia do homem”, de uma filosofia antropológica, liberta dos erros e preconceitos de um sistema meramente antropocêntrico. Tal é o tópico, o tema geral, que, em suas várias formas, impregna todos os grandes sistemas metafísicos do século XVII. É a solução racionalista do problema do homem. A razão matemática representa o elo entre o homem e o universo; permite-nos passar livremente de um para o outro. A razão matemática é a chave da verdadeira compreensão da ordem cósmica e da ordem moral.
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Em 1754, Denis Diderot publicou uma série de aforismos intitulada Pensées sur l’interprétation de la nature. Neste ensaio declarava que a superioridade da matemática no domínio da ciência já não é incontestada. A matemática, asseverava, alcançou tão alto grau de perfeição que já não é possível nenhum progresso; daqui por diante, permanecerá estacionária.
Nous touchons au moment d’une grande révolution dans les sciences. Au penchant que les esprits me paroissent avoir à la morale, aux belles lettres, à l’histoire de la nature et à la physique expérimentale j’oserois presque assurer qu’avant qu’il soit cent ans on ne comptera pas trois grands géomètres en Europe. Cette science s’arrêtera tout court où l’auront laissé les Ber-nouilli, les Euler, les Maupertuis et les d’Alembert. Ils auront posés les colonnes d’Hercule, on n’ira point au delà (Diderot, Pensées sur l’interprétation de la nature, seç. 4; cf. secs. 17, 21).
Diderot é um dos grandes representantes da filosofia do iluminismo. Como editor da Encyclopédie se achava no verdadeiro centro de todos os grandes movimentos intelectuais de sua época. Ninguém teve uma perspectiva mais clara do desenvolvimento geral do pensamento científico nem uma percepção mais apurada de todas as tendências do século XVIII. E o que Diderot tem de mais característico e notável como representante de todos os ideais do iluminismo, é o fato de ter começado a duvidar deles, em sua validade absoluta. Espera que surja uma nova forma de ciência — de caráter mais concreto, apoiada antes na observação dos fatos que na presunção de princípios gerais. A seu ver, sobrestimamos em demasia nossos métodos lógicos e racionais. Sabemos comparar, organizar e sistematizar fatos conhecidos; mas não cultivamos os únicos métodos pelos quais nos seria possível descobrir novos fatos. Vivemos na ilusão de que o homem que não sabe contar sua fortuna não se acha em melhor situação que aquele que não tem fortuna alguma. Está próximo, todavia, o momento em que superaremos este preconceito e, então, teremos alcançado um ponto novo e culminante na história da ciência natural.
Cumpriu-se a profecia de Diderot? Acaso lhe confirmou o ponto de vista o desenvolvimento das ideias científicas no século XIX? Num ponto, sem dúvida, seu erro é patente. Sua expectativa de que o pensamento matemático se deteria, de que os grandes matemáticos do século XVIII haviam alcançado as Colunas de Hércules, revelou-se totalmente falsa. À constelação do século XVIII devemos agora juntar os nomes de Gauss, Riemann, Weierstrass, Poincaré. Por toda parte, na ciência do século XIX, encontramos com a marcha triunfal de novas ideias e conceitos matemáticos. Não obstante, a predição de Diderot continha um elemento de verdade, pois a inovação da estrutura intelectual do século XIX está no lugar que o pensamento matemático ocupa na hierarquia científica. Nova força principia a aparecer. O pensamento biológico precede o pensamento matemático. Na primeira metade do século XIX ainda existem metafísicos como Herbart e psicólogos como G. Th. Fechner, que alimentam a esperança de fundar uma psicologia matemática. Mas esses projetos se dissipam rapidamente após a publicação da obra de Darwin Sobre a Origem das Espécies. A partir deste momento parece definitivamente fixado o verdadeiro caráter da filosofia antropológica. Depois de um sem-número de tentativas infrutíferas, a filosofia do homem pisa, afinal, terreno firme. Já não precisamos entregar-nos a especulações vãs, pois não estamos à cata de uma definição geral da natureza ou da essência do homem. Nosso problema se resume em reunir as provas empíricas que a teoria geral da evolução colocou à nossa disposição, farta e ricamente.
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Tal era a convicção de que compartiam cientistas e filósofos do século XIX. Mas o que se tornou ainda mais importante para a história geral das ideias e para o desenvolvimento do pensamento filosófico não foram os fatos empíricos da evolução, mas a interpretação teórica destes fatos. Esta interpretação não era determinada, num sentido sem ambiguidades, pela própria prova empírica, mas por certos princípios fundamentais que tinham um caráter metafísico positivo. Embora raras vezes reconhecido, o modelo metafísico do pensamento evolutivo era uma força motivadora latente. Num sentido filosófico geral, a teoria da evolução não era, de maneira alguma, uma conquista recente. Recebera sua expressão clássica na psicologia de Aristóteles e na sua visão geral da vida orgânica. A distinção característica e fundamental, entre a versão aristotélica e a versão moderna da evolução, consistia no fato de que Aristóteles lhe dava uma interpretação formal, ao passo que os modernos tentavam apresentar uma interpretação material. Aristóteles estava convencido de que, para compreender o plano geral da natureza, as origens da vida, as formas inferiores precisavam ser interpretadas à luz das formas superiores. Em sua metafísica, em sua definição da alma como “a primeira realização de um corpo natural potencialmente dotado de vida”, a vida orgânica é concebida e interpretada em termos de vida humana; seu caráter teleológico se projeta em todo o domínio dos fenômenos naturais. Na teoria moderna, inverte-se a ordem: as causas finais de Aristóteles são caracterizadas como mero ” asylum ignorantiae”. Um dos principais escopos da obra de Darwin foi libertar o pensamento moderno da ilusão das causas finais. Precisamos buscar compreender a estrutura da natureza orgânica somente pelas causas materiais, pois, do contrário, não poderemos compreendê-la. Mas as causas materiais na terminologia aristotélica, são causas “acidentais”. Aristóteles sustentou enfaticamente a impossibilidade de se compreender os fenômenos da vida por estas causas acidentais. A teoria moderna aceita o desafio. Os pensadores modernos sustentaram que, depois de inúmeras e baldadas tentativas anteriores, conseguiram explicar, claramente, a vida orgânica como simples produto de câmbio As mudanças acidentais que ocorrem na vida de todo organismo são suficientes para explicar a gradativa transformação que nos conduz, das formas mais simples de vida encontradas num protozoário, às formas mais elevadas e complicadas. Uma das mais notáveis expressões desse ponto de vista oferece-nos o próprio Darwin, em geral tão reticente no que concerne às suas concepções filosóficas. “Não somente as várias raças domésticas”, observa Darwin no final do seu livro, The Variation of Animals and Plants under Domestication.
mas os gêneros e ordens mais distintos dentro da mesma grande classe — por exemplo, mamíferos, pássaros, répteis e peixes — são todos descendentes do mesmo progenitor comum, e precisamos admitir que toda a vasta quantidade de diferenças entre estas formas surgiu, em primeiro lugar, da simples variabilidade. A consideração do assunto por esse prisma é suficiente para deixar-nos perplexos. Mas nosso assombro diminuirá se refletirmos que um número quase infinito de seres, durante um lapso quase infinito de tempo, teve amiúde toda sua organização plástica em certo grau, e que cada ligeira modificação de estrutura, que de algum modo era benéfica, em condições excessivamente complexas de vida, se preservou, enquanto que toda modificação nociva foi rigorosamente destruída. E a acumulação, processada durante tão longo tempo, de variações benéficas terá infalivelmente conduzido a estruturas tão diversificadas, tão formosamente adaptadas a várias finalidades e tão excelentemente coordenadas como vemos nas plantas e animais que nos cercam. Por isso falei em seleção como a força suprema, quer aplicada pelo homem à formação de raças domésticas, quer aplicada pela natureza à produção de espécies… Se um arquiteto decidisse erguer um nobre e amplo edifício, sem o emprego da pedra lavrada, escolhendo, entre os fragmentos esparsos na base de um precipício, pedras em forma de cunha para seus arcos, pedras alongadas para seus dintéis e pedras achatadas para seu telhado, nós lhe admiraríamos a habilidade e o consideraríamos como a força suprema. Pois bem, os fragmentos de pedra, julgados indispensáveis pelo arquiteto, estão para o edifício por ele construído como estão as flutuantes variações dos seres orgânicos para as variadas e admiráveis estruturas finalmente adquiridas pelos seus descendentes modificados. (Darwin, The Variation of Animals and Plants under Domestication, Nova Iorque, D. Appleton & Co., 1897, II, cap. XXVIII, pp. 425 e seguintes)
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Mas era preciso dar outro passo, talvez o mais importante, antes que se pudesse desenvolver uma verdadeira filosofia antropológica. A teoria da evolução destruíra os limites arbitrários entre as diferentes formas de vida orgânica. Não há espécies separadas; há somente uma contínua e ininterrupta corrente de vida. Mas podemos aplicar o mesmo princípio à vida humana e à cultura humana? Será o mundo cultural, como o mundo orgânico, feito de mudanças acidentais? — Não possui ele uma estrutura teleológica definida e inegável? Com isto se apresentou um novo problema a todos os filósofos que faziam da teoria geral da evolução seu ponto de partida. Era-lhes preciso provar que o mundo cultural, o mundo da civilização humana, é reduzível a umas poucas causas gerais, que são as mesmas para os fenômenos físicos e para os chamados fenômenos espirituais. Tal foi o novo tipo de filosofia da cultura introduzido por Hippolyte Taine em sua Filosofia da Arte e em sua História da Literatura Inglesa. “Aqui, como em toda a parte”, disse Taine,
temos apenas um problema mecânico; o efeito total é um resultado, que depende inteiramente da magnitude e da direção das causas produtoras… Posto que os meios de notação não são os mesmos nas ciências morais e nas ciências físicas, em ambas a matéria é idêntica, igualmente feita de forças, magnitudes e direções, e podemos dizer que em ambas o resultado final é produzido de acordo com o mesmo método. (Taine, Histoire de la littérature anglaise, Intro. Tradução inglesa de H. van Laun, Nova Iorque, Holt & Co., 1872, I, pp. 12 e seguintes)
É o mesmo anel de ferro da necessidade, envolvendo tanto nossa vida física quanto a cultural. Em seus sentimentos, inclinações, ideias, pensamentos e na produção de obras de arte, o homem jamais pode sair deste círculo mágico. Podemos considerá-lo como um animal de espécie superior, que produz filosofias e poemas como os bichos-da-seda produzem seus casulos ou as abelhas constroem seus alvéolos. No prefácio de sua grande obra, Les origines de la France contemporaine, declara Taine que vai estudar a transformação da França como resultado da Revolução Francesa tal qual faria com a “metamorfose de um inseto”.
Surge aqui, porém, outra pergunta. Podemos contentar-nos em enumerar, de maneira meramente empírica, os diferentes impulsos que encontramos na natureza humana? Para termos deles uma visão realmente científica, teriam de ser classificados e sistematizados, e é óbvio que nem todos estão no mesmo nível. Precisamos supô-los dotados de uma estrutura definida — e uma das primeiras e mais importantes tarefas da nossa psicologia e da nossa teoria da cultura é descobrir essa estrutura. No complicado mecanismo da vida humana precisamos descobrir a força propulsora oculta, que põe em movimento todo o mecanismo de nosso pensamento e vontade. O objetivo principal de todas estas teorias era provar a unidade e a homogeneidade da natureza humana. Mas se examinarmos as explicações que elas pretendiam dar, a unidade da natureza humana se nos afigura extremamente duvidosa. Todo filósofo acredita haver encontrado a mola mestra e a faculdade principal — Vidée maîtresse, como lhe chamava Taine. Mas no que concerne ao caráter dessa faculdade principal todas as explicações diferem amplamente uma da outra e se contradizem. Cada pensador nos dá uma visão especial da natureza humana. Todos estes filósofos são empiristas decididos: querem mostrar fatos e nada mais que fatos. Mas sua interpretação da prova empírica contém, desde o princípio, uma suposição arbitrária — e essa arbitrariedade se torna mais e mais manifesta à proporção que a teoria se desenvolve e assume um aspecto mais requintado e complicado. Nietzsche proclama a vontade do poder, Freud assinala o instinto sexual, Marx entroniza o instinto econômico. Cada teoria se transforma num leito de Procusto, onde se esticam os fatos empíricos para que se adaptem a um padrão preconcebido.
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Em virtude deste desenvolvimento, nossa moderna teoria do homem perdeu seu centro intelectual. Ganhamos, em seu lugar, uma completa anarquia de pensamento. Até nas épocas anteriores, evidentemente, havia grande discrepância de opiniões e teorias em relação ao problema. Mas subsistia, ao menos, uma orientação geral, um ponto de vista, a que se podiam referir todas as diferenças individuais. A metafísica, a teologia, a matemática e a biologia assumiram, sucessivamente, a orientação do pensamento sobre o problema do homem e lhe determinaram a linha de investigação. A verdadeira crise do problema se manifestou quando deixou de existir o poder central capaz de dirigir todos os esforços individuais. Percebia-se ainda a suma importância do problema em todos os diversos ramos do conhecimento e da investigação. Mas já não existia uma autoridade estabelecida, para a qual se pudesse apelar. Teólogos, cientistas, políticos, sociólogos, biologistas, psicólogos, etnólogos, economistas, todos abordavam o problema pelos seus pontos de vista. Era impossível combinar ou unificar os aspectos e perspectivas particulares. Nem mesmo dentro dos campos especiais havia um princípio científico geralmente aceito. O fator pessoal passou a prevalecer cada vez mais, e o temperamento do escritor começou a desempenhar um papel decisivo. Trahit sua quemque voluptas: cada autor parece, em última análise, movido pela própria concepção e valorização da vida humana.
Que este antagonismo de ideias não é apenas um grave problema teórico, mas uma ameaça iminente a toda a extensão de nossa vida ética e cultural, não padece dúvida. Em recente pensamento filosófico, Max Scheler foi um dos primeiros a tomar consciência deste perigo e a chamar a atenção para ele. “Em nenhum outro período do conhecimento humano”, declara Scheler,
o homem se tornou mais problemático para sisi mesmo do que em nossos dias. Dispomos de uma antropologia científica, uma antropologia filosófica e uma antropologia teológica que se ignoram entre si. Por conseguinte, já não possuímos nenhuma ideia clara e coerente do homem. A multiplicidade cada vez maior das ciências particulares, que se ocupam do estudo dos homens, antes confundiu e obscureceu do que elucidou nossa concepção do homem. (Max Scheler, Die Stellung des Menschen im Kosmos, Darmstadt, Reichl, 1928, pp. 13 e seguinte)
Tal é a estranha situação em que se encontra a filosofia moderna. Nenhuma outra idade se viu em posição tão favorável no que concerne às fontes do conhecimento da natureza humana. A psicologia, a etnografia, a antropologia e a história reuniram um cabedal de fatos surpreendentemente rico e de constante crescimento. Nossos instrumentos técnicos de observação e experimentação foram imensamente aperfeiçoados e nossas análises se tornaram mais apuradas e mais penetrantes. Apesar disto, não parece que tenhamos encontrado ainda um método para o domínio e a organização deste material. Cotejado com nossa própria abundância, o passado pode parecer paupérrimo. Entretanto, nossa riqueza de fatos não é necessariamente uma riqueza de pensamentos. A não ser que consigamos encontrar o fio de Ariadne que nos tire deste labirinto, não poderemos ter uma visão do caráter geral da cultura humana, e continuaremos perdidos no meio de um conjunto de dados desconexos e desintegrados, carente, ao que parece, de toda unidade conceitual.