Buzzi (I:Pref) – Humano

ESTE livro se formou lentamente num discurso, que é apenas caminho, parábola da vida. O discurso se constitui numa sucessão de palavras, umas após outras, numa perseguição sem pouso, acerca de um tema único: a vida que já somos. A linguagem diz nossa consagração à vida. Viver é devotar-se à vida no enredo de uma língua, na trama de uma fala, no enfardamento de um palavreado.

Estamos, antes de qualquer decisão, no destino e na urdidura da linguagem: sentimos em nós a doação da vida e, no toque cordial dessa gratuidade, cultivamos a virtude da devoção à vida. A devoção à vida nos leva a empreender tarefas, a frequentar cursos, a ler livros, a interpretar as possibilidades do discurso.

Quanto mais desejamos aperfeiçoar o empreendimento da vida mais recorremos aos cursos para, na provocação de diferentes discursos, retomarmos com mais fervor a linguagem da vida que nos está mais próxima: o nosso diário.

O que importa em toda leitura que fazemos, em todo curso que frequentamos, é sempre tão-só a linguagem que nos está mais próxima: o viver diário.

O livro, na arquitetura de um discurso de ideias, parece que se afasta da linguagem do viver-diário. Somos tentados a contrapor a paisagem descortinada pelo livro à paisagem conhecida do quotidiano. Essa oposição invade todos os caminhos do pensamento distraído. Surge então a dicotomia: livro e vida.

No entanto, nãooposição entre livro e vida, pois nunca vivemos a vida na conquista absoluta dela mesma.

Vivemo-la na leitura de nossa subjetividade, na bandeja de nossa consciência. Essa é o nosso livro-diário.

Vivemos a vida sempre numa leitura, num livro. O quotidiano é o livro fundamental. Os outros são modulações diferenciadas do mesmo.

No livro-diário temos a vida na unidade dinâmica de dois níveis: o funcional e o significativo.

No nível funcional andamos sempre empenhados na conquista de objetivos determinados. Aprimoramos nossas competências, aperfeiçoamos os modelos de ação para, com menos investimento e em tempo menor, alcançar os objetivos, isto é, os «bens» que consideramos necessários a um viver mais digno e humano.

O viver-diário se escoa no círculo de uma tal funcionalidade: estudamos para adquirir o saber de funcionamento dos modernos sistemas de ação, trabalhamos para agenciar os sistemas de ação instituídos e repousamos para recobrar forças que são o feedback, a re-alimentação dessa circularidade funcional.

Embora se objetive em sistemas de funcionalidade e persiga, na operatividade de tais sistemas, «bens» definidos (o salário, o alimento, o vestuário, o automóvel, o jogo, a estima de uma pessoa, a catequese de um bairro, a saúde de um doente, a alegria de quem está triste, o ânimo de quem está desanimado, o bom comportamento, o respeito à lei, etc.), o viver-diário não se endereça primordialmente a esses «bens» definidos. Ainda que o dia-a-dia se mova sem tréguas na estância de uma tal funcionalidade, não estancia nos «projetos» da funcionalidade.

Na estância do viver-diário, ordenado em projetos, logo celebramos a gratuidade do dom da vida. Louvar a doação da vida em tudo que projetamos, amamos e buscamos, é viver o sentido da funcionalidade do livro-diário. A funcionalidade do livro-diário não nos conduz apenas à conquista dos «bens» definidos por nossos desejos, mas nos reconduz ao mistério de nós mesmos: à experiência da gratuidade absoluta do que somos e temos. Nessa experiência as proposições de saber são sempre também exclamações de louvor à vida.

No desejo de sermos mais, arquitetamos projetos em cujo recinto imaginamos alcançar os «bens» que nos gratifiquem a vida em maior plenitude. A isso tudo somos compelidos pelo dom-da-vida. O impulso de louvação à vida é o nível significativo que institui os caminhos da funcionalidade e empolga os discursantes de sua fala.

Na medida em que, na estância de funcionalidade do livro-diário, acolhemos a gratuidade da vida, que de mil e uma maneiras se oferece a nosso serviço, surgirá, por certo, na afeição dessa oferenda das coisas da vida por nós, a vontade de ajuntar forças para a consagração laudatória ao dom-da-vida.

Este livro se inscreve no desejo de conquistar uma maior correspondência e co-pertença à vida, de tal maneira que o viver-diário seja o caminho da devoção de quem se surpreende na gratuidade absoluta da doação.

A conquista de devotamento ao dom-da-vida está na linguagem deste discurso:

Confúcio contemplava a catarata de Lu-Liang. A cortina de água tem a altura de dez homens em pé, um em cima do outro.

Depois da queda, a corrente impetuosa de águas espumantes se precipita ao longo de quarenta milhas, entre as rochas. Nem tartarugas, peixes ou crocodilos podiam nadar nesse turbilhão.

Viu, porém, um homem nadando na torrente.

Crendo tratar-se de um suicida cansado dos sofrimentos da vida, mandou que seus discípulos o salvassem da morte.

A uns cem passos abaixo, porém, o homem saiu da água, sacudiu alegre os cabelos molhados e cantarolava.

Disse Confúcio:

Pensei que você fosse um espírito. Vejo, porém, que é mortal. Diga-me, por favor, em que consistem a técnica e o método de sua natação?

Respondeu-lhe o mortal:

Não sei. Instalei-me na terra, enraizei-me no hábito do quotidiano; no desempenho recolhido do habitat diário, alojei-me na fluência da vida; aos poucos a fluência da vida se tornou o habitáculo da minha natureza como a lei perfeita da regência do corpo. Caio na água, desço e subo com ela, na correspondência a sua doação. Nãotécnica nem método.

Perguntou-lhe Confúcio:

O que significa instalar-se no hábito do quotidiano, alojar-se na fluência da vida, tomar corpo na regência da lei perfeita?

Respondeu-lhe o homem:

Sou campônio. Nasci na terra. Moro nela. Isso se chama paz, o recolhimento do diário. Da paz flui a vida. Deixar fluir a vida no recolhimento diário é o hábito. Isso se chama: ser. Com o tempo, o ser toma corpo, cresce como fruto da vida, prenhe de vigor. Tudo é uno. Cada caminho é ressonância da vida. Isso se chama: liberdade ou espírito. É só isso, nada mais”. (Chuang Tzu, Thomas Merton: “A via de Chuang Tzu” cap. 19).

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