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Habermas (TCI:51-52) – Gehlen e a técnica

terça-feira 2 de novembro de 2021

  

Se o fenômeno a que Marcuse   liga a sua análise de sociedade, a saber, a peculiar fusão de técnica e dominação, de racionalidade e opressão, não pudesse interpretar-se de outro modo a não ser supondo que no a priori material da ciência e da técnica se oculta um projecto de mundo determinado por interesses de classe e pela situação histórica, um «projecto», como Marcuse diz, seguindo o Sartre   fenomenológico — então, não podería pensar-se uma emancipação sem uma revolução prévia da própria ciência e técnica. Em algumas passagens, Marcuse sente-se tentado a enlaçar esta ideia de uma nova ciência com a promessa, familiar na mística judaica e protestante, de uma «ressurreição» da natureza caída»: um topos que, como se sabe, entrou na filosofia de Schelling   (e de Baader  ) através do pietismo suábio e reaparece nos Manuscritos de Paris em Marx   e, hoje, constitui a ideia central da filosofia de Bloch e, de foi ma reflexiva, alimenta também as esperanças mais secretas de Benjamim, Horkheimer   e Adorno  . E assim também Marcuse: «O que eu quero realçar é que a ciência, em virtude do seu próprio método e dos seus conceitos, projectou e fomentou um universo no qual a dominação da natureza se vinculou com a dominação dos homens — vínculo que tende a afectar [50] fatalmente este universo enquanto todo. A natureza, compreendida e dominada pela ciência, surge de novo no aparelho de produção e de destruição, que mantém e melhora a vida dos indivíduos e, ao mesmo tempo, os submete aos senhores do aparelho. Assim, a hierarquia racional funde-se com a social e, nesta situação, uma mudança na direcção do progresso, que conseguisse romper este vínculo fatal, influenciaria também a própria estrutura da ciência—o projecto da ciência. Sem perder o seu carácter racional, as suas hipóteses desenvolver-se-iam num contexto experimental essencialmente diverso (no de um mundo libertado); a ciência chegaria, por conseguinte, a conceitos sobre a natureza essencialmente distintos e estabelecería factos essencialmente diferentes» [1].

De modo muito consequente, Marcuse não só tem diante dos olhos uma outra formação de teorias, mas também uma metodologia da ciência diferente nos seus princípios. O enquadramento transcendental em que a natureza se convertería em objecto de uma nova experiência já não mais seria o círculo funcional da acção instrumental, mas, em vez do ponto de vista da possível disposição técnica, surgiría o de um carinhoso cuidado que libertaria o potencial da natureza: «existem duas formas de dominação: uma repressiva e outra libertadora» [2]. A isto importa contrapor que a ciência moderna só se podia conceber como um projecto historicamente sem precedentes se, pelo menos, fosse pensável um projecto alternativo e, além disso, uma nova ciência alternativa deveria incluir a definição de uma nova técnica. Uma tal consideração desanima-nos, já que a técnica, se em geral pudesse reduzir-se a um projecto histórico, teria evidentemente de conduzir a um «projecto» do gênero humano no seu conjunto, e não a um projecto historicamente superável.

Arnold Gehlen   chamou a atenção e, segundo me parece, de forma concludente para o facto de que existe uma conexão [51] imanente entre a técnica, que conhecemos e a estrutura da acção racional dirigida a fins. Se entendermos o círculo funcional da acção controlada pelo êxito como a unificação de decisão racional e de acção instrumental, então podemos reconstruir a história da técnica sob o ponto de vista de uma objectivação gradual da acção racional teleológica. Em qualquer dos casos, a evolução técnica ajusta-se ao modelo interpretativo, segundo o qual o gênero humano teria projectado, uma a uma, ao nível dos meios técnicos, as componentes elementares do círculo funcional da acção racional teleológica, que inicialmente radica no organismo humano, e assim ele seria dispensado das funções correspondentes [3]. Primeiro, reforçaram-se e substituíram-se as funções do aparelho locomotor (mãos e pernas); em seguida, a produção da energia (o corpo humano), depois, as funções do aparelho dos sentidos (olhos, ouvidos, pele) e, por fim, as funções do centro de controlo (do cérebro). Se, pois, se tem presente que a evolução técnica obedece a uma lógica que corresponde à estrutura da acção racional teleológica e controlada pelo êxito — e isto significa: à estrutura do trabalho — então, não se vê como poderíamos renunciar à técnica, isto é, à nossa técnica, substituindo-a por uma qualitativamente distinta, enquanto não se modificar a organização da natureza humana e enquanto houvermos de manter a nossa vida por meio do trabalho social e com. a ajuda dos meios que substituem o trabalho.


Ver online : Habermas


[1Ibid., pp. 180 e s.

[2Ibid., p. 247.

[3«Esta lei enuncia um acontecer intratécnico, um decurso que, no seu conjunto, não foi querido pelo homem, mas esta lei impõe-se, por assim dizer, pela rectaguarda ou instintivamente, ao longo de toda a história da cultura humana. Além disso, segundo esta lei, não pode haver nenhum desenvolvimento da técnica para além do estádio da automatização mais completa possível, pois, não podería especificar-se mais nenhum âmbito da actividade funcional humana, que se pudesse objcctivar.» (A. Gehlen, «Anthropologische Ansicht der Technik», in Technik im technischen Zeitalter, 1965).