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Fernandes (FC:90-92) – A incomensurabilidade dos paradigmas

quarta-feira 24 de abril de 2024, por Cardoso de Castro

  

Mas é preciso agora — ossos do ofício! — desincumbirmo-nos das “essências reais”, e investigar a natureza da Existência. Um pouco mais de ginástica. Tome alguma coisa; abstraia-lhe a existência: o que restaria seria sua essência. Defina alguma coisa; entenda a definição: seu significado seria a essência. Tome agora outra vez alguma coisa, mas, ao invés de abstrair-lhe a existência, inclua-a no gênero, ou na espécie a que pertence: você a teria incluído no que seria a sua essência. Lembre-se agora do nosso experimento anterior a respeito de cebolas. Se você puder conceber a ideia de uma propriedade (neste nosso exercício, “qualidade”) — como todas, decomponível em outras propriedades — que, além de pertencer a uma coisa necessariamente, pertença unicamente a ela e só a ela, essa propriedade seria sua essência.

Pode-se distinguir pelo menos quatro acepções de “essência”: o Ser de um objeto-momentâneo, que não possa ser percebido, ou concebido, mais de uma vez; o significado de uma definição real, não nominal; a “substância segunda”; e uma propriedade intrínseca”, ou necessária. No entanto, antes de investigarmos, brevemente, cada uma dessas acepções, é indispensável compreender em que sentido a fenomenologia, por si só, é inadequada para essa tarefa. A noção de essência, aliás, é a fonte de grande parte de nossas incompreensões da Aparência e da Realidade.

O que significa tomar alguma coisa fazendo abstração de sua existência? A primeira ideia que nos ocorre, e aparentemente a mais natural, é a de que tal abstração nos põe, ou põe a mente, diante de uma “essência”, ou seja, da “coisa ela mesma”, enquanto fenômeno. Este me parece ser o sentido mais óbvio da suspensão de juízo (de existência) que opera a “redução fenomenológica”. (Eu ainda preferiria “redução transcendental” transfenomênica, mas não nos apeguemos tanto a palavras ...) Essa “coisa em si mesma”, à qual os fenomenólogos nos exortam a voltar, tem, no entanto, características intrigantes, sobretudo no que depende do noema, que me parece um instrumento inadequado para compreender a Identificação, que é o que está pressuposto pelo Cogito. Achamos muito natural dizer de um “objeto” intencional que o objeto apresentado no sentido a é o mesmo objeto apresentado no sentido b. Mas jamais poderemos compreender a natureza da Identificação a = b deste modo, porque o que dissemos já é a Identificação entre a e b. Dizer isso do que “intencionamos” — e o noema de Husserl   é uma estrutura da consciência que, embora não seja o objeto intencional, pode ser encarado como uma generalização do Sinn de Frege para dar conta da intencionalidade, inclusive do problema de Brentano   —, dizer isso do que intencionamos é confundir o Ser com a existência. O que “é o mesmo”, jamais pode ser o intencionado como tal, ainda que seja uma intensão, ou um ente intensional, como um sentido. Quando dizemos “é o mesmo”, expulsamos a Realidade para fora da Aparência, de modo que jamais a Aparência poderá ser “a mesma”, mas sim o que concebemos — não intencionalmente —, como Realidade.

Para Husserl, por um lado, dois “momentos”, ou “aspectos” de um ato, ou dois “noemata” não podem ser idênticos entre si, como a = b; por outro lado, qualquer um deles, tomado isoladamente, pode ser examinado, investigado, discutido, ou seja, pode ser o objeto de juízos de identidades materiais, como a = b. Um noema não pode ser igual a outro noema, mas pode, por sua vez, ser posto diante de nossa mente, pela reflexão, de maneiras suficientemente distintas, para que possamos investigá-lo como um “ente”, como uma “essência”, como uma “entidade intensional”. Com efeito, um noema “é uma generalização da noção de sentido [1]; tem dois componentes, um deles comum a todos os atos que tem o mesmo objeto, com exatamente as mesmas propriedades, orientados exatamente da mesma maneira etc, independentemente do caráter “tético” do ato — ou seja, perceber, lembrar, imaginar, etc.; e um outro componente que é diferente em atos com características téticas distintas”. [2] De fato, para Husserl, embora “o Sinn noemático”, afirma Follesdal, “seja aquilo em virtude do que a consciência se relaciona ao seu objeto ... o noema de um ato não é o objeto do ato (i.e. o objeto para o qual o ato é dirigido)”. Mas é justamente isto que me parece impossibilitar a compreensão da Identificação, pressuposta pelo Cogito. Quem parte do Cogito, jamais o compreenderá. Embora ao mesmo noema corresponda um só objeto, e cada ato tenha um, e só um, noema, ao mesmo objeto podem corresponder vários noemata diferentes ... e vários Sinne diferentes. De modo que noemata são entidades abstratas, não percebidas por meio dos nossos sentidos, mas conhecidas e investigadas por meio da reflexão fenomenológica. [91] São, sobretudo, no meu entender, entidades misteriosamente maleáveis, capazes de praticamente tudo o que for teoricamente necessário para dar conta do recado, ou seja, “resolver” o problema da intencionalidade. O noema husserliano parece-me um caleidoscópio de epiciclos ptolomaicos. É uma típica entidade ad hoc. [zotpressInText item="3829881:SXGQHUWN,90-92"].

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Ver online : Sergio L. C. Fernandes


[1Sinn. Bedeutung.

[2FØLLESDAL 1982, “Husserl’s notion of Noema”, p. 74 segs. e as abundantes citações textuais de Husserl lá contidas; mas vejam também McINTYRE & SMITH 1982, “Husserl’s Identification of Meaning and Noema”; e DREYFUS 1982, “Husserl’s Perceptual Noema”.